Entrevista

"A Funai não sabe a que veio", diz Sydney Possuelo

Terceira publicação da série registra conversa com o sertanista que fez contato com os Arara nos anos 80

 Sydney Possuelo com o ancião Arara -  (crédito:  Wellington Magalhães)
Sydney Possuelo com o ancião Arara - (crédito: Wellington Magalhães)

Por Cristina Ávila, especial para o Correio

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Os Arara — indígenas mais impactados pela construção da Transamazônica (BR-230), nos anos 70, e pela Usina Hidrelétrica Belo Monte, inaugurada em 2019, próxima a Altamira, sudoeste do Pará — foram o último povo contatado pelo sertanista Sydney Possuelo pelo método das antigas frentes de atração da então Fundação Nacional do Índio (Funai), que forçava o contato por meio de presentes deixados na floresta. Ele conseguiu quebrar essa tradição, por considerá-la danosa; passou-se então a monitorar à distância o território de povos isolados, sem aproximação. Em dezembro do ano passado, há mais de 40 anos sem ver os Arara, Sydney viajou 10 dias pelo rio Iriri, na região da Terra do Meio, visitando aldeias nas Terras Indígenas Arara e Cachoeira Seca. Voltou pra casa indignado. Nos primeiros dias de janeiro protocolou uma carta à presidenta da Funai, Joenia Wapichana, com denúncias até hoje não respondidas.

Eu estive com o sertanista na primeira semana de setembro por cerca de quatro horas no apartamento em que vive sozinho na Asa Sul, em Brasília. Vi e ouvi este homem de 85 anos com o mesmo sorriso alegre que sempre recebe convidados e a mesma postura grave e destemida que assume ao se referir aos inimigos dos povos indígenas. Ele me chamou pra conversar na cozinha, ao redor de uma grande mesa em ambiente claro e bem arrumado, onde se revelou organizado, racional, estratégico, cético, delicado, brusco por vezes de acordo com o rumo do assunto e emocionado ao relembrar passagens históricas em que foi admirado protagonista. Ele nasceu em 19 de abril de 1940. Nesse dia em que sua mãe paria em Minas Gerais, indígenas reunidos no México criaram o "Dia do Índio".

Sydney Possuelo trabalhou 42 anos na Funai. Criada em dezembro de 1967, ele não demorou muito para ingressar no serviço público, com a bagagem de dez anos de experiência com os sertanistas Villas-Bôas, que criaram o pioneiro Parque Indígena do Xingu, resultado da epopeica expedição Roncador-Xingu (1945). Em 1987, Possuelo criou o Departamento de Índios Isolados, numa pequena sala do antigo prédio de três andares do órgão federal, sempre cheio de famílias indígenas que vinham dos estados apresentar demandas. Localizado na área central de Brasília, o edifício foi desocupado em 2013 por ordem da Defesa Civil por falta de segurança nas instalações. Lá, em sua sala, Possuelo montou uma espécie de micro museu com objetos indígenas coletados em expedições na Amazônia, fotografias de sua trajetória profissional e documentos com registros de importantes momentos da política indigenista brasileira. O belo e bem tratado acervo migrou para seu apartamento na Asa Sul, em 2006.

Sydney, na carta à presidenta da Funai, tu relatas graves situações nas aldeias, especialmente o descaso com a permanência de 4 mil invasores denunciados a ti pelos Arara. Com destaque para o vilarejo Maribel que já tem décadas e virou um porto fluvial no Iriri com acesso livre dentro da Cachoeira Seca.

Eu expulsei 50 mil garimpeiros pra demarcação da terra Yanomami (1992, época em que presidiu a Funai) e hoje o governo não consegue tirar 2 ou 3 mil da terra Arara. Esse povoado começou com a antiga Bannach (empresa que instalou serraria de mogno no território), tá ali desde os primórdios da Transamazônica, acho que chegou antes da Funai. É um a-ciiiinte vergonhoso. Fazem um Festival do Tucunaré todo ano (neste ano realizou a 24ª edição, com palco e cantores sertanejos). Um horror, tudo com eneriga elétrica e com financiamento de projetos agropecuários, com apoio de prefeituras e de políticos de esquerda e de direita. "O branco pesca, toma conta do rio. Estamos na nossa terra e temos que pedir passagem a eles", me disseram os velhinhos Arara. A terra tá demarcada, delimitada, tem invasor? Você chama a polícia e joga pra fora, é só isso. Pra isso tem a lei que regulamenta. Fazem reuniões e mais reuniões, debates e debates, você vê o tempo passar, os governos se sucedem e nada acontece. Todos falham. O treco tá lá cada dia aumentando, que diacho é aquilo? Cadê o Ministério Público? Os índios falaram pra mim… "a gente vai lá e tem vergonha, estão na nossa terra, pegando o nosso peixe, comendo a nossa comida e a gente não faz nada". Mas tem que ficar quietinho, senão acaba levando tiro.

Dizem que na Maribel tem famílias que descendem há quase um século de seringueiros. Acho que há uma campanha pra comoção pública, para que deixem as pessoas lá.

É assim que nascem os grandes latifúndios. Os grandes jogam a classe de boa-fé lá, depois esses mesmos grileiros expulsam os pobres e vão vendendo, vira um comércio de terra. Pra resolver o problema dos coitados que estão lá existem as políticas pra quilombola e várias outras políticas públicas. O índio só tem a Funai. Se a Funai falha o índio tá perdido, como tá perdido até hoje. E esse Ministério dos Povos Indígenas é uma brincadeira.

Por quê?

É irrelevante. Contribuiu com alguma coisa para melhorar a situação do índio? O índio hoje vive melhor do que antes do ministério? Nós sabemos que não. Quais as normas que segue? Ninguém sabe o que faz. Na minha opinião, (o ministério) veio pra dar uma satisfação nacional e in-ter-na-cional: "olha, nós cuidamos dos índios". A Funai é o órgão encarregado de delimitar, demarcar, responsável por educação, saúde, fazer isso e aquilo. Era só dar recursos, dar autoridade pra Funai. O que a Joenia (Wapichana, presidente da Funai) vai fazer? Não tem dinheiro, não tem gente, não tem nada. O que ela vai fazer, meu deus? A Funai é um órgão criado por lei. Pra acabar, só outra lei, o presidente da República não pode. Mas o ministério, quando chegar outro presidente, dá uma penada, fecha esse negócio aí, e acabou.

Eu fui duas vezes pra uma aldeia na Cachoeira Seca com a família do cacique. Pedi autorização pra Funai, fiz todos os exames médicos exigidos, em julho de 2024, e nunca tive resposta. Encontrei duas vezes na aldeia o responsável local da Funai pelo território Arara, ele me disse que analisaria meu pedido. Fiquei constrangida, e sem ele pedir eu prometi não sair da aldeia pra onde eu fui com o cacique. Foi o único momento em toda a viagem que senti medo de verdade, pois fui alertada por pessoas de um grupo de WhatsApp que eu poderia ser processada e até mesmo ter meus equipamentos e cadernos apreendidos. Eu sabia da necessidade de pedir autorização, mas fui do mesmo jeito, os indígenas não são tutelados, eu estava com o cacique que é autoridade em seu território. Tu acha que agi errado?

Mas eu também.

Tu também o quê?

A Funai dificulta quando vou entrar em terra indígena. Estou aposentado. Pô, no Vale do Javari (AM) eu não posso entrar, eu criei o Vale do Javari. Qualquer um, ela (a Funai) dificulta. O meu filho, Orlando, trabalha na Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, região no Amazonas afetada por criminosos onde foram mortos Bruno Pereira e Dom Phillips). O meu filho trabalha, é funcionário da Univaja, ele é pago pra fazer o trabalho de monitorização da terra indígena, tá fazendo um excelente trabalho. Ele não pode passar em frente à Funai. A Funai não deixa ele passar com o barco, ele é proibido. Durma-se com um barulho desse.

Então isso não acontece só nos Arara.

Claro, é no país inteiro, no país inteiro eles dificultam. A Funai tem medo de gente independente, gente que vê o certo, o errado, principalmente jornalista que vai escrever a história. A Funai tem medo porque sabe que tá em falta. Tem consciência. Lá na área não tem chefe de posto, se tivesse ele poderia exigir a autorização. Mas a Funai não está ali pra constranger as pessoas que querem fazer matéria, é canalhice quando proíbe jornalista, etnólogo, antropólogo. Tem que deixar entrar, a menos que haja uma situação de risco, uma revolta, um surto de gripe.

Sydney, confesso que eu apoio o governo Lula. O que significa dizer que a Joenia não está fazendo o que deve?

Eu também apoio. Mas amigos é que precisam dizer o que não está correto. Quando falo na Funai não estou me referindo à presidenta. Se eu for falar da Joenia eu falo Joenia. Mas a Funai tem uma hierarquia dentro do Estado. E está em todo o lugar e não sabe a que veio. Ninguém sabe porque está ali, pra que existe. Esses novos funcionários simplesmente outro dia chegaram numa frente e fizeram uma greve pra ter água mineral. Hahahahahahaha. Água mineral na selva pra eles, porque era muito perigoso ficar sem água mineral. A Funai no meu tempo era um órgão de luta. Nós transformamos a Funai num órgão de luta. Um órgão pra apoiar um povo massacrado pela sociedade nacional. Essa era a visão que tínhamos. Essas pessoas não existem mais. Ahhhh, eu não sei. Quando eu fui atrás dos Villa-Bôas eu era um garoto, uns 19 anos, fui atrás de aventura; chegando lá encontro os índios e aí mudou minha vida, a minha perspectiva, comecei a gostar do jeito deles estarem no mundo, de como vivem. Uma sociedade tranquila. Eles são muito mais felizes do que nós. Se a felicidade pudesse ser medida pela capacidade de sorrir, os índios ganhariam, principalmente os isolados. Riem até quando dão uma topada e rebenta a unha. Aí, me apaixonei. Eu sou um homem apaixonado.

 

 

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CB
postado em 23/10/2025 03:55
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