Terra do Meio: da Rio+20 à COP30

Corrida do ouro se intensifica em 2025 e ameaça Iriri

Sexta reportagem mostra garimpos em 136 afluentes do Curuá, que deságua no conservado Rio da Terra do Meio

De volta ao território tradicional, os Panará desenvolveram sofisticado artesanato  -  (crédito: Loiro Cunha/Divulgação)
De volta ao território tradicional, os Panará desenvolveram sofisticado artesanato - (crédito: Loiro Cunha/Divulgação)

Por Cristina Ávila, especial para o Correio — Aviões pequenos sobrevoaram baixinho a aldeia. Dias seguidos, as aeronaves passaram às 10h da manhã e voltaram às 4h da tarde. Coisa nunca vista naquelas malocas localizadas nas margens do Iriri, nas florestas na divisa do Pará e Mato Grosso. O fato encheu as conversas de preocupação e, assim, os Panará descobriram, no último mês de outubro, que era ouro que voava sobre suas cabeças. Esse povo narra a luta de quem sempre quis voltar pra casa, voltou e agora teme a invasão de seu território pela exploração do minério.

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"Tem trator escondido embaixo da mata. Tá tudo estragado lá na área Kayapó. Já está no limite do nosso território e está aumentando muito, vai entrar na nossa terra, se o governo não nos ajudar. Tem muita clareira. A água já está contaminada. É muito triste a situação na Terra Indígena Baú. O garimpo tá muito perto da aldeia", disseram-me os Panará, nesta semana pelo telefone. Os nomes não são identificados porque se sentem ameaçados. A Terra Indígena (TI) Panará abrange parte de Altamira (PA), Guarantã do Norte e Matupá (MT). 

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A situação alertada pelos Panará ao Correio Braziliense tem detalhes descritos na nota técnica inédita que o Instituto Socioambiental (ISA) entregou ao jornal em que descreve a "Expansão do Garimpo na Bacia do Xingu". Segundo o documento, desde 2024, as rotinas mensais do Sistema Remoto de Alerta de Desmatamento do Xingu (Sirad-X) têm revelado expansão de focos de garimpo na bacia hidrográfica. "Esse avanço se manteve em 2025, estando atualmente em Unidades de Conservação e Terras Indígenas da bacia. Várias dessas Áreas Protegidas estão na Terra do Meio, região entre os Rios Xingu e Iriri", prossegue o documento.

A Bacia do Xingu se estende por aproximadamente 51 milhões de hectares no Pará e Mato Grosso com ecossistemas que incluem florestas densas, várzeas amazônicas e áreas de Cerrado. Essa imensa região engloba o mosaico reconhecido por indígenas e ribeirinhos como "Terra do Meio", que é foco desta série de reportagens, cujo mote foi disparado pela não execução do Termo de Cooperação firmado (assinado) entre o Brasil, sob a liderança do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e União Europeia, que teve ênfase na Rio 20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em 2012. 

Eu estava em Altamira naquele ano, e escrevi a matéria publicada no site do  MMA, em 26 de junho de 2012, que anunciava a reunião de planejamento que aconteceu durante quatro dias com os gestores de 11 unidades de conservação da Terra do Meio para aplicação de 11 milhões de euros na consolidação das áreas protegidas, ou seja, o atendimento pleno de todos os marcos referenciais fundamentais para a proteção de 22,8 milhões de hectares de florestas, área maior do que o estado do Paraná (contei essa história na primeira reportagem desta série). Selado, o Termo de Cooperação entre os dois países nunca foi executado. O Correio buscou o MMA para saber o motivo e não obteve resposta.

Hoje, os crimes se multiplicam, tornando ineficazes os esforços para garantir as áreas protegidas nas frequentes operações e atividades desenvolvidas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). As dificuldades tendem a ser ainda maiores em ano eleitoral.

Mais porteiras abertas

Os crimes se somam todos os dias e se entrecruzam. As pressões sobre a Terra do Meio no Pará e a Bacia do Xingu, que se estende também no Mato Grosso, são tão graves e têm aumentando de modo tão evidente que esta matéria precisou ser atualizada diversas vezes. A mais recente foi nesta semana. 

No dia 3 de dezembro, a analista de Geoprocessamento do ISA Thaise Rodrigues disse-me que, no dia anterior, um dos analistas de monitoramento da instituição descobriu um ramal terrestre ilegal de 19 quilômetros aberto entre outubro e novembro, vinculando toda a malha viária clandestina que já existia na Reserva Extrativista (resex) Riozinho do Anfrísio ao antigo garimpo Pesquisa, que já existe há anos dentro da unidade de conservação. 

"A abertura foi muito rápida. Ainda mais que se localiza em floresta densa", observou ela. A Resex Riozinho do Anfrísio está localizada no rio Riozinho do Anfrísio, que deságua no Iriri. Esse é outro potencial de contaminação do Iriri. A explosão de crimes ambientais nesta unidade de conservação foi abordada na quarta reportagem da série, publicada em 24 de outubro. Nesta matéria, um ribeirinho já dizia que o Pesquisa estava funcionando. O roubo de madeira é histórico na reserva e até 2017 o ISA  já registrava o monitoramento de 897 km dentro desta unidade de conservação. 

"Há anos, temos ouvido relatos sobre o garimpo Pesquisa, mas não tínhamos como identificar a localização por satélite. Há dois ou três anos, não havia clareira suficiente para ser visto por satélite. Hoje o desmatamento está bem visível, pois foi reativado com bastante força". Thaise explica que o garimpo era apenas acessado por igarapé. "Agora ficou muito mais fácil. É bem possível que levem maquinário para aumentar ainda mais o potencial de exploração do garimpo".

A analista do ISA aponta o Pesquisa como outro importante potencial de contaminação do Iriri, pois está localizado entre igarapés afluentes do Rio Riozinho do Anfrísio, que deságua no Iriri. Mas não faz parte da bacia do Curuá. Embora ambos — Curuá e Riozinho — deságuem no Iriri, mas em margens opostas. Ou seja, os garimpos estão bem espalhados pelas bacias hidrográficas.  

"Os ribeirinhos já têm notado sinais no Iriri. Um deles nos contou que foi de voadeira até a foz do Curuá e já tem uma nítida separação de coloração na água, a limpa do Iriri e a barrenta do Curuá. Nos contaram que o rio tem muita lama, que a situação está horrível. Conversei com pessoas que moram lá e algumas só continuam morando porque têm água de poço, mas há locais onde já seria impossível o abastecimento. Algumas localidades apelam para igarapés próximos de casa. Mas os igarapés secam nos verões (durante as temporadas de vazantes da Amazônia). Várias comunidades ficam sujeitas à contaminação", acrescenta Thaise Rodrigues. 

Mapa-Terra do Meio
Mapa-Terra do Meio (foto: Valdo Virgo)

No rastro do mercúrio

“Os Kayapó estavam nos contando que o garimpo está sujando o Ptxataxá, afluente do Curuá. Há uma explosão de alertas de garimpo, com muita intensidade neste ano”, ressalta a coordenadora de Proteção Territorial do Programa Xingu, do ISA, antropóloga Luísa Molina, especializada no tema. “Em uma análise do Observatório Rede Xingu+ foram identificados pelo menos 136 igarapés ou rios,- que são afluentes do rio Curuá, com exploração garimpeira. A informação é inédita passada ao Correio. A rede a que se referiu é formada por mais de 50 organizações de povos da floresta e da sociedade civil que atuam no Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental na região.

A contaminação por mercúrio da Bacia do Xingu provavelmente está sendo continuamente ampliada, já que o metal é usado sem controle na amálgama feita na extração de ouro e cai diretamente na água. Mas comprovação mesmo tem muito pouca. Luísa Molina mostra o parecer preliminar de um inquérito civil sobre estudos realizados a partir de dados coletados nos rios Curuá e Baú, com o objetivo de avaliar a contaminação por mercúrio da fauna aquática na Terra Indígena Baú, localizada em Altamira (considerado o maior município do mundo, abrange grande parte da região da Bacia do Xingu, no Pará), essa TI é habitada pelos povos Mebengokre (Kayapó) e os isolados Pu’rô. O documento é de 3 de abril de 2019 e foi encaminhado pelo Ministério Público Federal ao Instituto Kabu, organização indígena que reúne 18 aldeias nas TIs Baú, Menkragnoti e Panará.

A análise foi feita por laboratório químico da Universidade Federal do Pará (UFPA) em 55 exemplares de peixes carnívoros de três espécies e indicou elevadas concentrações em todas amostras, sobretudo no Curuá, “algumas excederam os limites de segurança estabelecidos por órgãos, como Organização Mundial de Saúde (OMS) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. O documento acrescenta que “embora algumas amostras dos peixes não tenham ultrapassado os valores recomendados pela OMS, é fundamental levar em consideração o consumo diário de peixes pelos indígenas, uma vez que, concentrações relativamente baixas de mercúrio nos peixes podem ser acumuladas ao longo do tempo e, dessa forma, representar um risco à população em médio e longo prazo”. Isso há quase sete anos.

376 anos para consolidar UCs

A consolidação das UCs, proposta pelo acordo internacional que aplicaria 11 milhões de euros na Terra do Meio, poderia ser importante contribuição para evitar as ameaças à conservação ambiental da região, incluindo demarcações. Mas o documento “Terras da Conservação da Natureza: Estratégia de Regularização Fundiária para Unidades de Conservação Federais”, do ICMBio, projetado para 2024-2026 afirma que se depender do ritmo e condições atuais, com corpo técnico’ de 33 servidores destacados para a atividade, seriam necessários 376 para a conclusão das regularizações fundiárias necessárias.

A coordenadora Geral de Consolidação Territorial do ICMBio, Eliani Maciel Lima, afirma que a situação, depois do concurso público realizado pelo órgão ambiental neste ano, praticamente não foi alterada, mesmo com o ingresso de 11 novos ambientalistas que ingressaram na sua coordenadoria. Porém, os servidores se desdobram. Na Estação Ecológica Terra do Meio (Esec) foi iniciada em maio uma operação de retirada voluntária de gado que deixará a UC livre de 6 mil cabeças de gado. Ela também considera avanço a Instrução Normativa ICMBio 24, publicada em agosto deste ano, que prevê o recebimento de doações de imóveis irregulares dentro de UCs como, por exemplo, compensação por passivos em reservas legais de imóveis rurais situados fora das UCs. Segundo a coordenadora, essa IN contribuiu para o resultado recorde neste ano de 76 imóveis doados e 40.825 hectares regularizados em UCs federais.

Eliani Lima também cita que no triênio 2023/2025 foram repassados ao ICMBio 1,4 milhão de hectares de terras públicas em seis unidades de conservação. E que pela primeira vez o órgão conseguiu valores representativos no orçamento da União para pagamento de imóveis, R$13,9 milhões.

Saiba mais no documento

  • De volta ao território tradicional, os Panará desenvolveram sofisticado artesanato
    De volta ao território tradicional, os Panará desenvolveram sofisticado artesanato Foto: Loiro Cunha/Divulgação
  • Mapa-Terra do Meio
    Mapa-Terra do Meio Foto: Valdo Virgo
  •  fotos da matéria da série Da Rio+20 à COP30, sobre garimpos, Terra Indígena Panará, Terra do Meio, Pará.
    fotos da matéria da série Da Rio+20 à COP30, sobre garimpos, Terra Indígena Panará, Terra do Meio, Pará. Foto: Loiro Cunha/ Divulgação
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postado em 06/12/2025 03:55 / atualizado em 07/12/2025 18:30
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