
País com população mais miscigenada do planeta — resultado da chegada de europeus, da migração forçada de africanos e, em muitos casos, da violência sexual contra mulheres indígenas — o Brasil, porém, é pouco representado em estudos genômicos. Agora, essa lacuna foi preenchida por uma pesquisa publicada na revista Science. Os cientistas, brasileiros, sequenciaram 2.723 DNAs completos e identificaram quase 9 milhões de variantes inéditas, sendo 36 mil potencialmente deletérias, ou seja, que podem ter impacto negativo à saúde.
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Além de descobrir genes que afetam a suscetibilidade a doenças como malária, tuberculose e hepatite, o estudo aponta variantes sob seleção natural pós-miscigenação, principalmente aqueles associados à fertilidade, metabolismo e resposta imune. Outra constatação é que os padrões regionais de saúde e enfermidades estão diretamente relacionados às proporções das origens regionais em cada parte do Brasil.
O estudo, ainda, tem implicações históricas e sociais. "A pesquisa confirma cientificamente a narrativa histórica de que o povo brasileiro surgiu da mistura entre povos indígenas nativos, africanos escravizados e colonizadores europeus. Mas vai além da média nacional, já que revela variações regionais profundas na composição genética e oferece informações sobre dinâmicas regionais da colonização e migração", avalia André Luís Soares Smarra, mestre em biofísica molecular e perito judicial. "Em resumo, a publicação reafirma as análises do DNA como uma ferramenta de reconstrução histórica e identitária."
Ancestralidade
Entre os séculos 15 e 20, 5 milhões de colonos europeus e um número igual de africanos chegaram ao Brasil, que já era habitado por estimados entre 3 e 5 milhões de indígenas. Esses movimentos — voluntários e forçados — resultaram em 200 milhões de pessoas com uma rica ancestralidade. Mais de 11% das variantes identificadas no trabalho publicado na Science, porém, não haviam sido documentadas anteriormente. O conjunto de dados está disponível para pesquisadores de todo o mundo, aumentando a diversidade de estudos epidemiológicos e clínicos.
Para Eduardo Ribeiro Paradela, doutor em neurociências e especialista em genética forense, a inclusão dos dados brasileiros em bancos de genoma tem profundos impactos para a ciência. "Ignorar a complexidade genética pode levar a subdiagnóstico ou a tratamentos menos eficazes em grupos minoritários. Incorporar esses dados nos estudos clínicos ajuda a corrigir desigualdades históricas no acesso a diagnósticos precisos e terapias adequadas", destaca Paradela, que também é perito judicial. "Esses dados, sobretudo, ajudarão a desenvolver políticas de saúde baseadas em dados genômicos reais da população brasileira."
Entre as descobertas da equipe, composta por pesquisadores de diversas instituições de pesquisa brasileira e pela Harvard Medical School, nos Estados Unidos, estão variantes genéticas associadas à suscetibilidade a doenças e a taxas mais altas de mortalidade. "Essas variantes podem ajudar a identificar grupos de risco dentro da população, permitindo o desenvolvimento de estratégias de prevenção mais eficazes e direcionadas", explica a principal autora, Kelly Nunes, doutora em genética e pesquisadora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Intervenções
A cientista destaca que, em doenças como diabetes, hipertensão e câncer, o conhecimento sobre variantes que contribuem para o aumento do risco pode levar a intervenções precoces e ao monitoramento contínuo dos indivíduos suscetíveis. "Além disso, compreender essas variantes pode facilitar o acesso a tratamentos mais personalizados, com a indicação de doses e medicamentos mais adequados", ressalta.
"O estudo também identificou variantes genéticas ligadas à fertilidade que se comportam de maneira diferente dependendo da ancestralidade, impactando na saúde para o planejamento reprodutivo, nos riscos obstétricos e para tecnologias de reprodução assistida, por exemplo", destaca André Luís Soares Smarra. Esses genes afetam a espermatogênese, a idade da primeira menstruação e da menopausa e o número de filhos. Um deles, por exemplo, tem forte sinal de seleção natural de brasileiros com ancestralidade africana, e está relacionado à produção de espermatozoides.
Três perguntas para
Kelly Nunes, pesquisadora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP)
Como a inclusão dos dados genéticos até então desconhecidos impacta futuros estudos epidemiológicos e clínicos?
Isso abre novas possibilidades para entender as características únicas da população brasileira, como a identificação de variantes raras ou específicas de determinadas ancestralidades, ou regiões do país. Com esses dados, futuros estudos epidemiológicos e clínicos podem ser mais precisos, oferecendo uma visão mais ampla dos fatores genéticos relevantes para a saúde pública no Brasil. Isso pode, por exemplo, levar a diagnósticos mais rápidos, melhores estratégias de prevenção e tratamentos personalizados. Além disso, a comparação entre esses dados brasileiros e os de outras populações ao redor do mundo pode trazer percepções sobre doenças emergentes, fatores ambientais e padrões de saúde, promovendo uma medicina mais integrada e adaptada à diversidade genética do Brasil.
Quais as consequências, para a saúde pública, da baixa representatividade de populações indígenas nos estudos de saúde?
A baixa representatividade das populações indígenas nos estudos de saúde traz sérias consequências para a saúde pública, pois limita a compreensão das especificidades genéticas e epidemiológicas desses povos e seus descendentes. Sem dados representativos, torna-se difícil identificar variantes genéticas que possam influenciar doenças prevalentes entre os indígenas ou desenvolver políticas de saúde adaptadas às suas realidades. Isso pode levar a diagnósticos imprecisos, tratamentos inadequados e ao agravamento das desigualdades em saúde. Além disso, a falta de representatividade freia o avanço de pesquisas que poderiam melhorar a qualidade de vida e as condições de saúde dessas comunidades, perpetuando sua exclusão dos benefícios da medicina personalizada e de políticas públicas mais eficazes.
Como os dados associados à fertilidade, à resposta imunológica e a traços metabólicos identificados no estudo impactam a saúde dos brasileiros?
Eles têm um impacto direto, uma vez que ajudam a compreender como as pessoas de diferentes regiões e origens genéticas do país respondem a desafios ambientais, alimentares e patológicos. Por exemplo, variantes genéticas relacionadas à resposta imunológica podem influenciar a suscetibilidade a infecções (vírus, bactérias, microrganismos) ou a doenças autoimunes, enquanto aqueles ligados ao metabolismo podem afetar o risco de doenças como obesidade e diabetes. Da mesma forma, os genes que afetam a fertilidade podem orientar tratamentos para casais que enfrentam dificuldades reprodutivas. O conhecimento dessas variantes permite uma abordagem de saúde mais personalizada, com a adaptação de intervenções médicas e políticas públicas que considerem as características genéticas da população brasileira, promovendo melhor qualidade de vida e resultados de saúde mais eficazes.
"Prevenção e Personalização"
A força do estudo publicado na Science é o número de genomas completos sequenciados no laboratório Dasa Genômica, 2.723 indivíduos, que compõem a maior coorte publicada até o momento entre as múltiplas coortes que fazem parte de um projeto público mais amplo: Genomas Brasil. Quanto maior o número de estudos publicados com dados genéticos da nossa população, mais rápido chegaremos em uma medicina mais personalizada que consiga usar os dados genéticos de cada indivíduo para auxiliar nas tomadas de decisão para sua saúde.
Temos que salientar que o presente estudo tem por maior finalidade demonstrar geneticamente uma das nossas grandes virtudes, que conhecemos pela nossa história e observando as características de nossa população: a nossa imensa diversidade.
A inovação em saúde hoje foca em uma saúde preventiva e personalizada. Os dados genéticos são utilizados para a prevenção, como na avaliação de risco de câncer. Também podem ser utilizados na personalização da atenção da saúde, aqui podemos citar o ajuste de doses de medicações com os testes de farmacogenômica. Pelo fato de a maioria dessas inovações serem baseadas em dados de europeus, existe o risco de não serem completamente adequados para populações não estudadas, como as indígenas, assim o avanço da medicina ocorre de forma desigual.
O estudo também identifica que, ao longo dos séculos, desde que houve a migração de populações europeias e africanas com a população indígena no Brasil, existe uma seleção de variantes genéticas, ou sejam uma vantagem para grupos de pessoas que apresentavam mutações, relacionadas a fertilidade, resposta imunológica e traços metabólicos. Isso pode ser importante para orientar políticas públicas de saúde para prevenção de doenças infecciosas ou metabólicas, tais como orientações nutricionais ou talvez quais vacinas terão que ter seu desenvolvimento priorizado.
* Cristovam Scapulatempo Neto, diretor médico de Anatomia Patológica e Genética da Dasa e Guilherme Yamamoto, líder de inovação genômica e bioinformática da Dasa Genômica.
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