Crimes Cibernéticos

Epidemia de crimes cibernéticos: internet vira terreno fértil para delitos

Entenda como o Discord e outras plataformas digitais têm sido cada vez mais utilizadas para a prática de crimes graves envolvendo jovens

crime online -  (crédito: pacifico)
crime online - (crédito: pacifico)

No último domingo, a Polícia Civil do Rio de Janeiro revelou ter impedido um atentado à bomba durante o show da cantora Lady Gaga em Copacabana. O ataque estava sendo planejado por um grupo de usuários do Discord, que aliciava adolescentes para participar da ação. Em abril, uma menina de oito anos morreu, em Ceilândia, após inalar desodorante em um "desafio viral" do TikTok. Já no final do mesmo mês, um grupo foi preso por suspeita de planejar a execução de um homem em situação de rua no Rio de Janeiro para transmitir o crime ao vivo pelo Discord em troca de dinheiro. No ano passado, um adolescente também foi detido por liderar um grupo que promovia torturas por meio da mesma plataforma.

O que esses casos têm em comum? Todos evidenciam como a internet tem se tornado um ambiente cada vez mais propício para práticas criminosas. Em especial, chama atenção o uso do Discord, que tem sido associado a diversos episódios de violência, tortura virtual, recrutamento de jovens e crimes organizados em rede.

O Discord é uma plataforma on-line que permite aos usuários se comunicarem por texto, voz e vídeo em servidores. Esses servidores funcionam como espaços de interação para grupos, podendo ser públicos ou privados, e oferecem canais dedicados a diferentes temas. O programa foi criado com o objetivo de conectar gamers que desejam jogar e se comunicar ao mesmo tempo, porém, tem sido cada vez mais utilizado para chantagens, indução à automutilação, práticas criminosas e incitação ao suicídio.

Essa realidade é retratada no livro Aconteceu com Minha Filha, escrito por um pai sob pseudônimo, que relata a experiência real de resgatar sua filha de 13 anos dos perigos ocultos em grupos do Discord. No início da obra, ele conta que notou mudanças no comportamento de Júlia — nome fictício dado à menina — e, a princípio, atribuiu isso às transformações comuns da adolescência. Porém, mais tarde, descobriu que a filha estava mergulhada em um submundo digital.

"Infelizmente, demorei muito para perceber o que realmente estava acontecendo. Só descobri no dia em que ela entrou no meu quarto, por volta das 23h, com braços e pernas cortados, e me disse: 'Pai, eu surtei! Me interna, eu surtei. Preciso ser internada!'", relata o autor. Naquele momento, após socorrê-la, ele decidiu vasculhar mais profundamente o celular da filha e compreendeu tudo o que ela estava passando.

Segundo Paulo Zsa Zsa, pseudônimo utilizado pelo autor do livro, o Discord se tornou um chat gigantesco, sem nenhum tipo de monitoramento, onde qualquer um pode criar sua própria comunidade e tratar do que quiser dentro dela. "É aí que surgem as 'panelas' — grupos formados dentro de servidores grandes —, um ambiente fértil para tudo o que não presta: pedofilia, automutilação, apologia ao nazismo... Tudo isso é exposto a crianças muito novas, como minha filha, de quem desconfio que, desde os nove anos de idade, já usava o Discord", explica.

Nesses grupos, surge o Lulz, uma corruptela de LOL (Laughing Out Loud, ou "rindo alto"), mas com um sentido bem diferente. A sigla pode ser entendida como "rir às custas de alguém". Fazer Lulz significa ser guiado em uma transmissão ao vivo no Discord por uma ou mais pessoas da "panela" e fazer tudo o que elas mandarem. "Nesse ambiente de sadismo extremo, todos se tornam vítimas e vilões. Uma plateia enlouquecida, composta em grande parte por crianças e adolescentes, incita, aos gritos, outras crianças a se machucar, cortar-se e passar por situações-limite que podem envolver crimes", afirma Paulo.

De acordo com Maria Eduarda Nunes, advogada de direito digital do Bento Muniz Advocacia, os principais crimes envolvem ameaças e incitações à violência, especialmente no contexto escolar, além da disseminação de discursos de ódio e da prática de estupro virtual. "O aliciamento de menores, a divulgação de conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes, perseguições on-line (stalking) e crimes contra a honra também são comuns", complementa.

O perfil mais recorrente desses infratores é composto por adolescentes e jovens adultos, predominantemente do sexo masculino, com idades entre 12 e 21 anos, que apresentam histórico de isolamento social, dificuldades de integração familiar e escolar, e fazem uso intensivo da internet sem supervisão dos responsáveis. "Frequentemente, eles encontram nessas plataformas um espaço de validação, pertencimento e identificação com ideologias extremistas", ressalta a especialista.

Maria Eduarda destaca que o Poder Judiciário brasileiro e as autoridades policiais têm demonstrado crescente atenção a crimes digitais envolvendo jovens, inclusive, atuando em conjunto com serviços de inteligência para identificar os autores desses delitos. "Em alguns casos concretos de ameaças, atentados e abusos virtuais, juízes têm autorizado a quebra de sigilo de dados, determinado a exclusão de conteúdos ilícitos e responsabilizado tanto os infratores quanto as plataformas que não colaboram com as investigações", relata.

Quando os infratores são menores de idade, aplicam-se as medidas socioeducativas previstas no ECA. Nos casos em que as vítimas são menores, o Judiciário tem priorizado a celeridade e a proteção integral das vítimas, revisando, inclusive, algumas interpretações legais à luz dessa proteção nas ações penais de iniciativa privada.

Porém, a advogada explica que lidar com essa temática ainda é um desafio. Apesar de o país contar com legislações importantes, como o Marco Civil da Internet, a LGPD e dispositivos dos Códigos Civil e Penal, ainda existem lacunas na forma como essas leis enfrentam crimes digitais complexos, o que evidencia a necessidade de regulamentações e atualizações específicas que tornem a legislação aplicável aos diversos desafios do ambiente digital.

"Os crimes digitais evoluem diariamente, tornando as atualizações legislativas, por vezes, insuficientes como base sólida para a responsabilização penal. Além disso, o Brasil enfrenta grande dificuldade na responsabilização de plataformas estrangeiras, com a demora na obtenção de dados pelas autoridades e a ausência de tipificação clara para certas condutas virtuais", detalha.

Tendo em vista essa problemática, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado aprovou o Projeto de Lei 537/24. De autoria do deputado Rodrigo Gambale (Podemos-SP), o PL propõe incluir na Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) ações específicas para prevenir, investigar e reprimir crimes cibernéticos com repercussões sociais violentas, como ataques a escolas.

A proposta também prevê que o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) priorize o financiamento dessas ações. O objetivo é fortalecer a inteligência policial e oferecer uma resposta mais eficaz às ameaças digitais. O projeto ainda será analisado por outras comissões antes de seguir para o Senado.

 


postado em 08/05/2025 06:00
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