
Por Gabriela Vitiello Wink* e Augusto de Abreu Rodrigues** — Nos últimos anos, empresas de diversos setores enfrentam um aumento significativo e atípico no volume de demandas judiciais consumeristas. Em muitos casos, esse crescimento não decorre apenas de problemas reais na prestação de serviço, no fornecimento de produtos ou no atendimento dos clientes, mas, sim, de práticas sistematizadas de judicialização abusiva, conhecidas como litigância predatória. Trata-se de um fenômeno complexo, que impõe prejuízos relevantes às empresas, sobrecarrega o Judiciário e desafia os limites entre o acesso à Justiça e o uso distorcido da tutela jurisdicional.
O ponto de inflexão para a percepção do problema costuma estar associado à detecção de padrões anormais de ajuizamento de ações: alto volume de demandas idênticas ou muito similares, muitas vezes concentradas em determinadas regiões do país (notadamente onde as indenizações e a fixação de honorários são mais generosas), com atuação reiterada dos mesmos escritórios ou procuradores. Em alguns casos, clientes sequer têm consciência plena da ação proposta em seu nome ou não buscaram previamente canais de atendimento extrajudicial.
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As consequências da litigância predatória para as empresas são expressivas. No campo financeiro, destaca-se o aumento de custos com contencioso, bem como a necessidade de provisionamentos relevantes. Operacionalmente, há desvio de foco das equipes jurídicas e sobrecarga dos sistemas internos. Reputacionalmente, a judicialização em massa pode afetar a imagem da empresa junto ao mercado e aos órgãos reguladores, além de comprometer a relação com os consumidores.
Além disso, estudos indicam que a litigância predatória gera impactos significativos para o sistema judiciário. Um relatório divulgado pelo Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (NUMOPEDE), ligado à Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, aponta que a movimentação predatória de processos atingiu cerca de 330 mil ações e gerou impacto de R$ 2,7 bilhões em um ano, sem contar outros custos indiretos. A Nota Técnica n. 1/2022 do Centro de Inteligência da Justiça de Minas Gerais, por sua vez, estima que, no ano de 2020, os prejuízos econômicos decorrentes do exercício abusivo do direito de acesso ao Poder Judiciário chegaram a mais de R$ 10,7 bilhões. Se somarmos os dados de cada Estado da Federação, os prejuízos serão certamente estarrecedores.
Para lidar com o problema, muitas empresas têm estruturado equipes especializadas dentro de seus departamentos jurídicos, criado comitês internos e investido em tecnologia. A análise de dados e a automação de respostas judiciais têm se mostrado ferramentas valiosas. Algumas empresas relatam que o enfrentamento mais firme ao fenômeno, como a contestação ativa de procuradores reiterados e a denúncia de padrões abusivos, trouxe resultados positivos, embora também possa gerar efeitos colaterais, como resistência de certos atores do sistema de justiça.
Outro eixo relevante é a articulação institucional. Empresas têm buscado apoio da OAB, de associações setoriais e de órgãos do Judiciário para ampliar o debate sobre o tema. A atuação conjunta visa não apenas combater abusos específicos, mas também fomentar uma cultura de resolução adequada de conflitos.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desempenha um papel ativo nesse contexto. A Recomendação nº 159, de 23 de outubro de 2024, orienta juízes e tribunais a adotarem medidas para identificar, tratar e prevenir a litigância abusiva. Ela define a litigância abusiva como o desvio ou o excesso manifesto dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, incluindo o ajuizamento de ações sem lastro, frívolas, ou com fracionamento desnecessário de pedidos. A norma traz diretrizes específicas que incentivam tribunais a utilizarem seus Centros de Inteligência e NUMOPEDES para detectar padrões abusivos. Também recomenda diligências específicas para verificação da legitimidade das ações, conforme previsto na recomendação. Além disso, estimula campanhas educativas e ações de formação continuada para magistrados sobre o tema e incentiva cooperação entre tribunais, advocacia e sociedade para o enfrentamento do problema, sem comprometer o direito de acesso à Justiça.
O papel do NUMOPEDE, criado no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo e replicado em outros tribunais, atua na identificação de padrões repetitivos e potencialmente abusivos de ajuizamento de demandas. Entre suas atribuições, destaca-se análise de demandas em massa com indícios de fraude ou artificialidade e a elaboração de relatórios técnicos sobre litigância predatória, destinados a subsidiar a atuação de magistrados e tribunais.
O enfrentamento da litigância predatória exige uma abordagem multifacetada. Reformas legais que coíbam o uso abusivo do processo, maior rigor ético por parte da advocacia e a valorização de métodos consensuais de resolução de conflitos são algumas das soluções apontadas. Além disso, é importante observar que o valor de indenizações por danos morais em casos padronizados e de baixa complexidade tem funcionado, em certos contextos, como verdadeiro chamariz para novas demandas. Assim, reflexões sobre a proporcionalidade e uniformização de critérios indenizatórios também devem compor a agenda de soluções.
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A litigância predatória é um desafio que transcende o âmbito empresarial e alcança todo o sistema de justiça. Enfrentá-la com firmeza, responsabilidade e visão sistêmica é fundamental para fortalecer o Estado de Direito, promover relações de consumo mais saudáveis e garantir uma Justiça acessível, eficiente e justa para todos.
Sócia de TozziniFreire Advogados*
Gerente executivo do Banco Bmg**
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