Visão do Direito

Considerações sobre o marco civil da internet

"Por maioria de votos, a Corte entendeu que a regra geral prevista no art. 19, segundo a qual as plataformas só podem ser responsabilizadas após ordem judicial, já não é suficiente"

Emanuela de Araújo Pereira, advogada criminalista pós-graduada em direito penal e processo penal, mestre em direito penal e ciências criminais e doutoranda em estado de direito e governança global -  (crédito: Giovana Karime)
Emanuela de Araújo Pereira, advogada criminalista pós-graduada em direito penal e processo penal, mestre em direito penal e ciências criminais e doutoranda em estado de direito e governança global - (crédito: Giovana Karime)

Por Emanuela de Araújo Pereira* — O Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou o julgamento que analisou a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, trazendo um novo entendimento sobre a responsabilidade das plataformas digitais por conteúdos publicados por terceiros. A decisão, com impacto direto no ambiente digital, representa um divisor de águas na forma como as redes sociais lidam com conteúdos ilícitos.

Por maioria de votos, a Corte entendeu que a regra geral prevista no art. 19, segundo a qual as plataformas só podem ser responsabilizadas após ordem judicial, já não é suficiente, por si só, para proteger direitos fundamentais e a democracia. Assim, firmou-se a tese de que, em situações de ilicitude evidente, como discurso de ódio, incitação à violência ou violação flagrante de direitos, as plataformas podem ser civilmente responsabilizadas se, mesmo notificadas, permanecerem omissas.

Essa mudança prática obriga as plataformas a responderem a notificações extrajudiciais que sejam claras, fundamentadas e feitas de boa-fé. Ou seja, ainda que a ordem judicial não seja obrigatória em todos os casos, não basta qualquer denúncia genérica. É preciso que o conteúdo notificado tenha ilegalidade manifesta, e que a plataforma, ciente disso, não tome nenhuma providência. Nessas hipóteses, poderá haver responsabilização civil.

O STF, ao modular os efeitos do art. 19, manteve sua constitucionalidade com ressalvas. No caso de crimes contra a honra, por exemplo, a regra da necessidade de ordem judicial segue válida ("Nas hipóteses de crime contra a honra aplica-se o art. 19 do MCI, sem prejuízo da possibilidade de remoção por notificação extrajudicial"). Mas nos casos em que o conteúdo é manifestamente ilícito, como em publicações com apologia ao nazismo, ameaças, pornografia de vingança, ou incitação direta à violência, a omissão diante da notificação poderá gerar consequências jurídicas para os provedores.

O STF também fixou a presunção de responsabilidade das plataformas em casos de conteúdos ilícitos veiculados por meio de anúncios pagos ou redes artificiais de distribuição, como bots e chatbots, independentemente de notificação. Embora vise coibir abusos automatizados, a medida acende um alerta: pode gerar insegurança jurídica ao presumir culpa sem análise prévia do contexto. Ainda assim, os provedores poderão se eximir se comprovarem atuação diligente e em tempo razoável para remover o conteúdo.

Esse novo entendimento representa um avanço no equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção de direitos. Ele reconhece que a internet deve continuar sendo um espaço de manifestação livre, mas com limites claros quando se trata de preservar a dignidade, segurança e integridade dos usuários.

A decisão também impõe deveres concretos às plataformas digitais, como a criação de canais eficazes de denúncia, atuação diligente na moderação de conteúdos, proteção ativa dos usuários e prestação de contas sobre suas políticas. Entre as exigências está, por exemplo, a publicação de relatórios anuais de transparência, com dados sobre remoções de conteúdo e práticas adotadas para moderação.

Com isso, o STF reforça a ideia de que a internet não é um espaço imune à responsabilidade. A decisão fortalece a proteção contra abusos, combate a disseminação de fake news e oferece caminhos para a construção de um ambiente digital mais seguro e ético.

Vivemos na sociedade da informação, em que o meio digital passou a influenciar de forma quase absoluta a forma de viver, comunicar-se e se relacionar. Nesse contexto, é essencial promover o debate entre o Estado e as big techs, a fim de se construir um consenso que permita a livre circulação de informações, sem comprometer direitos fundamentais igualmente protegidos pelo Estado Democrático de Direito.

A sociedade ganha ao ter um ambiente mais regulado sem comprometer o direito à livre expressão. E as plataformas, por sua vez, passam a ter um papel ainda mais ativo na construção de um espaço digital responsável, inclusivo e comprometido com os princípios democráticos.

Por fim, é importante ressaltar que a Corte determinou a modulação dos efeitos da decisão, de forma a resguardar a segurança jurídica, ou seja, a nova tese terá aplicação apenas prospectiva, não alcançando decisões já transitadas em julgado.

Advogada criminalista pós-graduada em direito penal e processo penal, mestre em direito penal e ciências criminais e doutoranda em estado de direito e governança global*

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postado em 03/07/2025 04:30
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