
Na última terça-feira, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) promoveu, por unanimidade, a juíza Soníria Campos Rocha D'Assunção ao cargo de desembargadora. A escolha foi feita a partir de uma lista exclusivamente feminina, elaborada com base no critério de merecimento, conforme determina a Resolução 525/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem como objetivo ampliar a participação feminina no Judiciário. Na primeira sessão destinada à escolha para o cargo, o Tribunal havia promovido o juiz Demetrius Cavalcanti, tornando-se o único do país a não cumprir a norma do CNJ, decisão posteriormente suspensa pelo próprio Conselho. Aproveitando a ocasião, o caderno Direito&Justiça entrevistou a mais nova desembargadora.
A senhora é a primeira mulher do TJDFT a ser promovida após a Resolução 525/2023 do CNJ. O que isso significa para a senhora?
É uma honra poder representar tantas mulheres. Sinto que o Tribunal depositou essa confiança em mim. Qualquer outra mulher poderia estar aqui hoje, entre tantas competentes que temos no próprio TJDFT. Mas coube a mim estar aqui, e me sinto verdadeiramente privilegiada e honrada por isso. Representar tantas mulheres em um tribunal no qual acredito, e continuo acreditando, ser de vanguarda, uma referência pelas políticas que aplica, me emociona. Tenho confiança nesse caminho que estamos construindo juntos, com o compromisso de cumprir a resolução e atender a todas as demandas necessárias para garantir os direitos de quem precisa. E isso vale não só para as mulheres, mas para todos aqueles que necessitam de maior atenção e representatividade dentro da Justiça.
Quando o Tribunal promoveu primeiramente o juiz Demetrius Cavalcanti, a senhora tinha alguma expectativa em relação à vaga?
Sim... Naquele momento, houve um entendimento do Tribunal sobre essa questão, que mais tarde foi modificado, como todos acompanharam. Não quero retomar tudo o que aconteceu, porque realmente foi um processo delicado. Sou uma pessoa de muita fé e, desde o momento em que surgiu a possibilidade de eu ser escolhida, nunca disse: "vai ser meu". Sempre entreguei nas mãos de Deus. Mas também havia uma confiança. O Tribunal tem uma tradição de respeitar a antiguidade, e eu era a mais antiga da lista. No meu coração, sempre houve essa expectativa de que, se fosse para seguir esse critério, seria natural que meu nome fosse escolhido. E foi isso que o Tribunal fez. Foi uma mistura de expectativa com entrega. E, de verdade, não consegui conter a emoção diante da forma como tudo aconteceu. A unanimidade da votação, o coleguismo, as manifestações de apoio dos colegas... tudo isso me tocou profundamente. Foi como um reconhecimento da minha trajetória no Tribunal. Já fui premiada duas vezes pelo meu trabalho aqui, e me senti muito honrada com essa decisão.
Na sua visão, por que o TJDFT, a princípio, não acatou a Resolução 525/2023 do CNJ? Foi por misoginia?
Essa questão é delicada. Porque, conhecendo um pouco os desembargadores, penso que o que mais contribuiu para aquele resultado foi uma interpretação equivocada da resolução. Eu realmente vejo dessa forma. Pessoalmente, nunca vivi um problema relacionado a gênero, embora eu saiba que exista. Não estou dizendo que não haja questões estruturais que precisam ser enfrentadas, claro que há. Mas, no meu caso, acredito que a decisão anterior foi, principalmente, fruto de uma leitura equivocada da norma. Talvez algumas pessoas tenham entendido que, por tradição, o critério da antiguidade poderia prevalecer independentemente do gênero e, como eu era a quarta mais antiga da lista, isso pesou. Acredito que esse entendimento, associado ao histórico do Tribunal de valorizar a antiguidade, acabou influenciando.
Qual é a importância de ampliar a participação das mulheres nos tribunais e nos tribunais superiores?
Acho essa uma pergunta muito importante. Quando falamos da importância da mulher, poderíamos listar mil razões. A mulher é essencial em todos os espaços, inclusive, e especialmente, nos tribunais. A presença feminina permite o surgimento de soluções diferentes, novos olhares sobre causas que antes não eram debatidas e atenção a situações que, por vezes, passavam despercebidas. Isso é importante para todos: para o sistema de Justiça, para a sociedade, para a democracia. Gostaria de destacar algo aqui: como juíza, preciso me abstrair de qualquer condição pessoal para me colocar no lugar do outro, entendendo toda a situação em que ele está inserido. É necessário sensibilidade para isso. O juiz, seja homem ou mulher, precisa ter essa capacidade de empatia, de se desprender de si mesmo e olhar profundamente para a realidade do outro. Se eu não conseguir fazer isso, estarei comprometendo meu próprio julgamento. Porque, para encontrar a melhor solução em um caso concreto, não basta aplicar a lei de forma fria. É preciso considerar o contexto, compreender o ser humano envolvido naquela situação. E isso é comum na nossa vida como magistrados. Nesse sentido, a presença da mulher contribui muito, sim. A mulher tem características que, muitas vezes, se complementam com as do homem, e vice-versa.
A senhora acredita que a maior diversidade nos tribunais, em termos de gênero e raça, pode influenciar as decisões judiciais e a qualidade da prestação jurisdicional? De que forma?
Acredito que o mais importante é a capacidade de cada pessoa de se colocar no lugar do outro. Essa empatia é fundamental para o exercício da magistratura. Mas, ao mesmo tempo, penso que a vivência da diversidade é uma experiência pela qual precisamos passar, para que possamos observar, medir e avaliar, com o tempo, a efetividade dessas políticas. Hoje temos, por exemplo, políticas de promoção da paridade de gênero, como as cotas para mulheres, e é essencial acompanharmos de perto os resultados dessas iniciativas. Para mim, a Justiça nasce de homens e mulheres comprometidos em pensar no outro e em servir. Nosso papel no Judiciário é, acima de tudo, um papel de serviço. E é isso que deve ser cada vez mais fortalecido. Claro que todas essas questões — gênero, raça, origem — importam, mas o foco precisa estar, sempre, na busca pela solução justa, no caso concreto.
Quando está em discussão um caso envolvendo violência contra a mulher, o julgamento feminino é mais sensível?
Acredito que toda vez que falamos sobre algo que vivemos ou conhecemos de perto, naturalmente temos mais facilidade para tratar do assunto. Isso acontece em qualquer situação. Mas isso não significa que só quem viveu determinada realidade tem legitimidade ou capacidade de compreendê-la. Por exemplo: eu nunca vivi uma situação de estupro, mas como julgadora, posso e devo me colocar no lugar da vítima. Posso me abstrair de quem sou, imaginar o que aquela mulher está sentindo, qual a perspectiva de vida dela. E isso não é uma capacidade exclusiva de mulheres, um homem também pode, e deve, fazer esse exercício. Esse é o nosso papel enquanto julgadores.
Quais foram os principais desafios que a senhora enfrentou ao longo de sua trajetória profissional?
Acho que o maior desafio é conciliar o ideal de justiça que carregamos com a realidade dos casos concretos. Nós, juízes, temos esse ideal de promover a justiça de forma plena, de transformar realidades, mas muitas vezes percebemos que, sozinhos, não conseguimos atingir toda a finalidade que gostaríamos. Esse, para mim, é o maior desafio: buscar ao máximo entender o contexto das pessoas e tentar oferecer soluções que, de fato, as façam sentir-se protegidas pelo Estado. Que elas saiam dali sentindo que o Judiciário tentou resolver o problema da melhor forma possível. Quando atuei na Vara de Execução Fiscal, também enfrentei um grande desafio: metade dos processos físicos do tribunal estava ali, e eu não tinha servidores suficientes. Criei mecanismos de movimentação em massa e um procedimento específico para tentar dar conta do acervo. Ainda assim, faltava gente. Foi quando me voluntariei para o projeto “Anjos da Manhã” e comecei a receber adolescentes em semiliberdade como estagiários. Eles vinham de realidades muito difíceis, e eu quis que se sentissem parte de algo maior. Trabalhei cidadania com eles, expliquei o papel deles na recuperação do crédito público, e vi muitos se transformarem. Alguns voltaram a estudar, passaram em concursos, acreditaram em si mesmos. Foi um dos trabalhos mais bonitos que já fiz. Olho para trás e penso: valeu a pena. Meu compromisso é esse — servir, transformar, fazer diferença na vida das pessoas. E quando vejo esse trabalho reconhecido, me emociono, porque acredito nisso de verdade.
A promoção representa um reconhecimento de seu trabalho. Qual é o sentimento de assumir essa nova responsabilidade?
Fico realmente muito honrada. Já usei essa palavra algumas vezes, mas é exatamente como me sinto. Sempre procurei fazer tudo o que chega às minhas mãos da melhor forma possível. Mas também sei que ninguém chega a lugar nenhum sozinha. Tenho comigo uma equipe maravilhosa: assessores, servidores, pessoas que não estão aqui nesta sala hoje, mas que fazem parte de tudo o que construímos juntos. Não posso dizer que esse resultado é só meu. Trabalhamos com metas, buscamos engajamento, queremos fazer sempre o melhor. E vejo isso em cada um: o comprometimento, a disposição de caminhar junto. É isso que dá resultado. Nunca é o esforço de uma só pessoa.