
Por André Coura* e Antônio Silvério Neto** — A recente derrubada pelo Congresso Nacional do decreto presidencial que aumentava a alíquota do IOF sobre operações financeiras revelou muito mais do que um impasse fiscal. O episódio tornou explícita a crise de governabilidade enfrentada pelo Executivo e escancarou o avanço de grupos de interesse sobre temas estratégicos para o Estado brasileiro. O caso das apostas esportivas, as chamadas bets, é exemplar nesse cenário. Com forte atuação no Congresso e tentáculos em diversas esferas do poder, o setor tem influenciado decisões que deveriam se pautar por critérios técnicos, e não por pressões corporativas.
O IOF, embora seja um tributo com função regulatória, foi utilizado pelo Ministério da Fazenda como instrumento de recomposição fiscal. A ideia era elevar a alíquota de 1,1% para 3,5% nas remessas ao exterior, o que geraria cerca de R$10 bilhões por ano e ajudaria a conter o deficit público. O objetivo fiscal, no entanto, esbarrou em resistências políticas. Sem aviso prévio, o presidente da Câmara dos Deputados pautou a votação que derrubaria o decreto presidencial, selando uma das maiores derrotas legislativas do governo Lula. Conforme apontado pelo cientista político Sérgio Abranches, o Brasil vive hoje uma disfunção do modelo de governabilidade: um Legislativo fortalecido, mas cada vez mais distante do interesse público.
O pano de fundo desse embate está ligado, em parte, ao poder de articulação de setores específicos. Reportagem da revista Piauí de julho revelou que parlamentares ligados ao setor de apostas, a chamada "bancada do Tigrinho", atuaram diretamente para bloquear o aumento da tributação das bets, que passaria de 12% para 18%. Os mesmos parlamentares também foram ativos na derrubada do IOF.
Ao que tudo indica, o efeito prático foi um duplo recuo e chance de reforçar a arrecadação em um setor bilionário e viu frustrada sua tentativa de compensação por meio do IOF.
Toda essa celeuma exige uma análise, também, à luz do direito penal e econômico. A Constituição confere ao Estado não apenas o poder de tributar, mas o dever de proteger o interesse coletivo, especialmente em setores que envolvem riscos sociais, como é o caso das apostas on-line. As evidências de movimentações suspeitas, lavagem de dinheiro, uso de benefícios sociais para jogar e a relação promíscua entre operadores e agentes públicos revelam uma teia que precisa ser enfrentada com instrumentos de controle, transparência e responsabilização.
A atuação da CPI das Apostas, que terminou sem relatório aprovado — algo inédito —, reforça a percepção de impunidade. Mesmo com indícios graves revelados por Relatórios de Inteligência Financeira — como a evolução patrimonial sem justificativa de operadores e a possível compra de decisões judiciais —, os trabalhos foram minados por manobras internas e pela ação coordenada de parlamentares aliados às casas de apostas.
Ao enfraquecer os mecanismos de controle tributário e blindar segmentos com alta capacidade de mobilização e recursos, o Congresso compromete a isonomia fiscal e a credibilidade das instituições. Do ponto de vista penal, é preocupante observar a banalização de condutas que podem configurar crimes contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro e corrupção. A ausência de responsabilização efetiva, tanto de empresas quanto de agentes públicos envolvidos, contribui para a perpetuação de um ambiente de insegurança jurídica e de descrença no sistema de Justiça.
Mais do que um conflito entre Executivo e Legislativo, a crise em torno do IOF é reflexo de um desequilíbrio institucional mais profundo. O Brasil precisa decidir se seguirá um caminho de responsabilidade fiscal e transparência ou se continuará a permitir que setores específicos capturem o processo decisório em benefício próprio. Isso exige compromisso dos Poderes da República com o interesse público.
A regulamentação das apostas e a política tributária não podem ser reféns da conveniência política. Precisam ser tratadas como políticas de Estado, com base em evidências, proteção social e rigor fiscal. Afinal, o que está em jogo não é apenas a arrecadação, é a integridade das instituições e o futuro da governabilidade democrática no país.
Graduado e mestre em direito pela Universidade FUMEC*
Advogado atuante há mais de 7 anos na área criminal, com foco no consultivo e contencioso criminal**
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