Visão do Direito

Os impactos para o mercado do projeto que endurece penas e reduz direitos

"O leitor menos avisado poderá enxergar alguma nobreza na intenção do projeto, que se dedica a encrudescer penas e ceifar direitos fundamentais de acusados de integrar organizações criminosas"

 Eixo Capital. Filipe Magliarelli, sócio em direito penal e processual penal do Cescon Barrieu -  (crédito:  Divulgação)
Eixo Capital. Filipe Magliarelli, sócio em direito penal e processual penal do Cescon Barrieu - (crédito: Divulgação)

Por Filipe Magliarelli* — As ciências criminais são estudadas há séculos, e o aumento das penas surge sempre como mote irresistível, à solução "milagrosa" ao aumento da criminalidade. Aumentar a pena de crimes é a ação imediata que, de um lado, permite ao Legislativo dar uma pronta resposta social quando se vê pressionado e, de outro lado, aufere ao cidadão médio uma (falsa) percepção de segurança.

No Brasil, vimos esse cenário com a edição da Lei dos Crimes Hediondos (8.072/1990), que previu sérias restrições aos acusados e condenados por crimes tidos por "graves", e a Lei de Tóxicos (11.343/2006), que trouxe previsões semelhantes. Décadas depois da égide dessas leis, tão aplaudidas à época de suas edições, muito pouco mudou no Brasil em termos de controle da criminalidade. Sinal de que o aumento de pena, em si, é uma simples falácia populista que nada agrega ao combate à criminalidade.

Com efeito, combater a criminalidade exige o devido fortalecimento das estruturas de persecução, melhor treinamento e aparelhamento de policiais e agentes públicos. Além disso, investimento em trabalho de base para que novos agentes não sejam recrutados ao crime — e, nesse ponto, a altíssima desigualdade social brasileira é nosso principal "calcanhar de Aquiles".

Entretanto, quando a irracionalidade no trato da criminalidade parece ter atingido seu grau máximo de inelasticidade, o Projeto de Lei nº 2.646/2025 surge para quebrar todos os paradigmas. O PL propõe sensíveis alterações, por exemplo, ao Código Penal, ao Código de Processo Penal, à Lei de Execuções Penais, à Lei das Organizações Criminosas (12.850/2013) e à Lei dos Crimes Ambientais (9.605/1998). De autoria coletiva de deputados da oposição, o PL "dispõe sobre os crimes praticados por organizações criminosas no âmbito de grandes setores da economia e cria medidas de prevenção e repressão de condutas criminosas praticadas por organizações criminosas e para coibir práticas ilegais nos setores públicos e privado".

O leitor menos avisado poderá enxergar alguma nobreza na intenção do projeto, que se dedica a encrudescer penas e ceifar direitos fundamentais de acusados de integrar organizações criminosas.

Não nos esqueçamos, porém, de que investigações de esquemas fraudulentos e de corrupção envolvendo grupos empresariais trazem, como "combo", a suspeita de participação em organização criminosa. Foi assim no Mensalão, foi também na Lava-Jato e continua sendo nas esparsas grandes investigações de que ainda se tem notícia. Além disso, crimes ambientais são os únicos em nosso país que são imputáveis às pessoas jurídicas, tendo sido uma preocupação constante de empresas cujas atividades trazem alguma exposição ao meio ambiente.

Portanto, o PL n.º 2.646/2025 deve ser visto com multa ressalva por toda sociedade civil, pois para além de atingir a criminalidade "comum", abre um perigoso flanco para a criminalização e demonização de atividades empresariais.

Bastaria ler a justificação dada pelos propositores: "A presente proposição tem por objetivo combater a entrada do crime nos setores econômicos, coibir práticas ilegais em âmbito público e privado, garantir o justo funcionamento do mercado e a integridade da cadeia produtiva. Ademais, a proposição mira o combate às organizações criminosas que atuam nesse setor e também em outras searas de importância para o país".

Em outro trecho, diz-se que: "O crime organizado tem se infiltrado de maneira alarmante em diversos setores da economia brasileira, utilizando estratégias sofisticadas para lavar dinheiro e expandir suas operações. (…). O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (…) imputa que as organizações criminosas 'ganham mais dinheiro com outras atividades do que só o tráfico de drogas'".

Constata-se que a proposição não mira apenas o traficante das "bocas de fumo" e a criminalidade armada. A percepção da "entrada do crime nos setores econômicos" também evidencia importantes setores da economia e seus respectivos representantes. Um exemplo disso é a previsão de pena de oito a 20 anos de reclusão para associação criminosa que impacte "gravemente um ou mais setores econômicos em escala regional ou nacional", cenário perfeito para uma acusação de cartel.

Ocorre que o PL também traz um aumento vertiginoso de penas sem aparente critério e proporcionalidade, inclusive, para crimes sem violência e grave ameaça. A maioria dos novos patamares mínimos e máximos de pena exclui a possibilidade de acordos entre os acusados e o Ministério Público.

Assim, com base no texto, se três ou mais empresários se associarem para praticar delito que impacte "gravemente um ou mais setores econômicos em escala regional ou nacional", como cartel, fraude à licitação ou crimes contra o sistema financeiro ou mercado de capitais, poderão sofrer penas mais duras do que se houvessem praticado homicídio doloso (com intenção) em sua forma simples, que prevê pena de 6 a 20 anos.

Mas não é só. Acusados de integrar organização criminosa, logo no início do processo, deverão comprovar a origem lícita dos honorários pagos a seus advogados, sob pena de aumento de pena e, mais grave, da presunção de coautoria do advogado aos crimes imputados ao seu cliente. Esse, por certo, é o trecho mais absurdo do PL, com grave restrição ao direito à ampla defesa e ao contraditório, além de desrespeito sem precedentes à prerrogativa do advogado e aos princípios gerais de direito penal.

A proposta ainda equipara ao crime de poluição à conduta de descumprir programas de descarbonização ou não adquirir créditos de descarbonização por biocombustíveis. O crime de poluição, o qual é um dos mais problemáticos da Lei dos Crimes Ambientais por sua ampla vagueza e insegurança jurídica, ganha contornos ainda maiores de inconstitucionalidade com a proposição do PL.

Outro trecho polêmico é a previsão de suspensão, por 180 dias, da eficácia da inscrição no CNPJ das empresas que adquirirem, distribuírem, transportarem, importarem, venderem ou revenderem produtos que tenham sido objeto de sonegação fiscal. Imagine-se empresas que utilizam em sua produção produto importado que, após adquirido, tem seus impostos questionados pela Receita Federal, com repercussão penal.

Causaria uma cascata de responsabilização automática de empresas por sonegações fiscais praticadas por seus fornecedores, outra previsão de questionável constitucionalidade. Há, também, previsões específicas para os mercados de energia elétrica, petróleo e gás, mineração e agro, com aumento de pena de cinco a 10 anos para receptação, armazenamento ou comercialização de produtos como gás, combustíveis, petróleo, produtos agrícolas, metais e cabos de energia elétrica que sejam produto do crime. Aqui, o termo produto do crime é amplo e pode significar não apenas objeto de furto e roubo, mas poderiam ser incluídos sem muito esforço produtos vendidos, transportados e armazenados em desconformidade com a lei ambiental, por exemplo.

O PL 2.646/2025 é mais um exemplo de medida populista e com potencial letalidade ao sistema de justiça criminal. Desta vez, porém, está mais perto da "Avenida Faria Lima" — em sua alusão simbólica como importante centro empresarial — como nunca houve outra lei penal no país.

Sócio em direito penal e processual penal do Cescon Barrieu*

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Por Opinião
postado em 21/08/2025 04:00
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