
Por Roberta Ferme Sivolella* — Hanna Arendt, em uma de suas obras mais famosas, pontuou que a persuasão de uma massa de pessoas a uma opinião era uma das maiores ferramentas em regimes democráticos. Lembrei-me dessa obra, e de uma de suas frases ("enquanto não se pode ensinar à multidão a doutrina da verdade, pode-se, por outro lado, persuadi-la a acreditar em uma opinião, como se essa opinião fosse a verdade") ao ler um texto que fazia referência aos movimentos de resistência ao fiel cumprimento da decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos. A decisão em referência era o célebre caso Brown x Board of Education, de 1954, tão citado nas faculdades de direito como marco decisório em reconhecimento aos direitos fundamentais, que considerava inconstitucional qualquer segregação racial em escolas públicas nos Estados Unidos.
Nas fotos referentes aos eventos que marcaram tanto o apoio à decisão quanto à resistência ao seu cumprimento, crianças de cerca de 12 (doze) anos de idade assistiam, confusas, ao que parecia ser o fim de uma separação dissociada de qualquer valor humano ou justificativa constitucional; uma desigualdade criada pela sociedade e pelo grupo hegemônico que detinha o poder decisório e econômico, mas que, ainda assim, detinha defensores ferrenhos.
A situação de resistência ao restabelecimento da ordem constitucional acabava por representar uma defesa inexplicável da manutenção do preconceito racial em seu último nível — que parece absurda nos dias de hoje — e, em conjunto com o olhar atônitodas crianças da época — quiçá mais sábias do que os adultos que discutiam a legitimidade daquela decisão — atônitas, fez despertar uma memória sensorial de infância. Quem passou a infância até o final dos anos 90 do século passado, certamente, recorda-se do "labirinto de espelhos" dos parques de diversões. A sensação de insegurança era dúbia, mescla de medo, por deixar aquele que entra no labirinto completamente fora do controle sobre a realidade posta, mas, ao mesmo tempo, geradora de curiosidade e fascínio pelas manipulações de ótica que transformavam o espectador em dezenas de crianças de si. O perigo, sempre, era que essa ilusão virasse guia desorientado, desaguando em caminhos sem saída ou com surpresas desagradáveis.
Sem ilusão de ótica, a sociedade é desigual por essência e em sua construção dos espaços de poder. Tais construções geraram em seus ventres vulnerabilidades que, sobrepostas, transformaram-se em problemas sociais estruturais. O abismo da desigualdade de condições se exterioriza por meio de violências, e a complexa rede de relações sociais que as envolve acaba se remodelando e se reconstruindo, de modo a dar força e manter as estruturas de exclusão que historicamente se consolidaram.
Na questão de gênero, a forma como a estrutura relacional se consolidou é cristalina, sem distorções de interpretação: às mulheres, tradicionalmente é reservado o espaço privado, interno, de cuidado, doméstico, introspectivo. Aos homens, o espaço público, de voz, decisão, e socialização. A filósofa britânica Carole Pateman, autora do livro Contrato Sexual, indica a citada dicotomia como uma "característica universal, trans-histórica e transcultural à existência humana". Essa dicotomia, aliada aos discursos de subordinação, alijou as mulheres da participação nas tomadas de decisãoao longo da história, potencializando as carências dos espaços de poder da modernidade. Afinal, excluir vozes de vulneráveis dos debates daspolíticas públicas traz a falsa sensação de que tais desigualdades de poder inexistem. São as imagens distorcidas do labirinto de espelhos, levando a gestão pública e a opinião de massa a escolhas inadequadas.
No mês de agosto de 2025, a Lei Maria da Penha faz 19 anos, e muito ainda há a evoluir. Em face dos índices alarmantes de feminicídios (quatro mulheres por dia são assassinadas no Brasil, segundo as últimas pesquisas), do aumento assustador de exteriorização e espetacularização da violência em crimes praticados contra a mulher, e do maior índice da história de machismo entre a população mais jovem (agravada por algoritmos e redes de incitação ao ódio), resistir à ideia de criar mecanismos que minorem as desigualdades existentes traz um dejà-vu aos relatos do aparentemente longínquo ano de 1954, e a sua resistência ao óbvio.
O tão falado Protocolo de Julgamento com perspectiva de gênero é um desses mecanismos necessários à minorar distorções de desigualdades. Ao lado dele, o Protocolo de Julgamento com perspectiva racial aprovado em 2024 e, em estudos, um também necessário Protocolo de Julgamento com perspectiva LGBTQIA . São instrumentos de grande relevância para corrigir as distorções geradas pelos espelhos de uma sociedade distópica.
Todos, absolutamente todos, visando o que também parece óbvio: o cumprimento da Constituição Federal, em seu princípio da igualdade previsto no art. 5º, I. Qualquer justificativa que se distancie desse propósito com o fito de desqualificar os referidos normativos é, portanto, ilusão de ótica.
E há mais informações relevantes a serem difundidas, sem distorções. Criado por um grupo de trabalho que se debruçou minuciosamente em protocolos similares já existentes em outros países, a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça com a transformação do Protocolo em resolução buscou cumprir fielmente o que determinou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Marcia Barbosa x Brasil, ao condenar o Estado brasileiro a implementar um protocolo estandardizado de investigação de casos de violência em razão de gênero. Inviabilizar a existência do protocolo é, portanto, descumprir uma decisão de Corte internacional.
Não parece adequado, igualmente, alocar a discussão sobre a violência de gênero e o Protocolo citado no campo do posicionamento político. Tal inserção minimiza esse complexo debate ao restringi-lo ao campo unicamente ideológico, além de polarizar e dividir forças em uma questão que transcende a responsabilidade partidária ou pessoalizada. A violência contra a mulher e os estereótipos que a alimentam são problemas estruturais, arraigados. Setoriza-los significa excluir responsabilidades — que são de todos e todas nós, partícipes (e não raro, partícipes por omissão) dos relacionados fenômenos sociais de exclusão e violência.
Acreditar que já vivemos em uma sociedade igualitária e que não necessita de protocolos mínimos que equilibrem a complexa balança das vulnerabilidades é entender a realidade como em um labirinto de espelhos — distorcida, tendenciosa, e sem saída para a efetivação dos direitos humanos fundamentais.
Juíza do Trabalho. Doutora em direito processual e pós doutora em direito público pela UERJ. Juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça. Membro do FONAVIM e do Comitê Executivo da Ouvidoria Nacional da Mulher*
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