
Por Guilherme Guimarães Feliciano* e Marcelo Brito Guimarães** — A filósofa estadunidense Judith Butler celebrizou-se afirmando que o gênero não é um dado biológico, mas a estilização repetidado corpo no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. Por isso, há séculos os corpos têm sido adestrados e vestidos conforme padrões impostos pela sociedade (e, geralmente reproduzidos, em menor escala e maior intensidade, no microcosmo das empresas e organizações sociais, onde se conformam e desenvolvem as relações de trabalho).Comportar-se, relacionar-se (inclusive, sexualmente) e vestir-se conforme a identidade gonadal é, portanto, uma exigência secular, que bem revela e recrudesce o fenômeno do biopoder, tão bemdescortinado pelo francês Michel Foucault.
E, nesse ponto, chegamos ao mundo do trabalho. Pessoas gays, lésbicas, bissexuais, transexuais — essas sobretudo (algo como 90% ativadas na prostituição) —, queers, intersexuais e afins, reconhecendo-se como tais (ou apenas por se suspeitar que sejam), passam a merecer, pela sua condição mesma, tratamentos discriminatórios e indignos, descrédito profissional, repulsa ao convívio, isolacionismo e toda sorte de constrangimento (como, p.ex., a obrigatoriedade de que frequentem banheiros destinados a estereótipos de gênero com os quais não se identificam).
Nas últimas décadas, porém, a ordem jurídica internacional tem engendrado respostas e buscado equacionamentos para esse estado decoisas. Reações ainda insuficientes, é verdade; mas não se podem negar os avanços. Para citar um único exemplo, retornando ao mundo do trabalho, a recente Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho, sobre violência e assédio no trabalho, estatuiu, em seu art. 1º, que (a) o termo "violência e assédio" no mundo do trabalho refere-se a um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou de suas ameaças, deocorrência única ou repetida, que visem, causem, ou sejam susceptíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, e inclui a violência e o assédio com base no género; e que (b) o termo "violência e assédio com base no género "significa violência e assédio dirigido às pessoas em virtude do seu sexo ou gênero, ou afetam de forma desproporcionada as pessoas de um determinado sexo ou gênero, e inclui o assédio sexual. A OIT passa a distinguir, pois, textual e insofismavelmente, os conceitos de sexo (um dado biológico) e gênero (um construto cultural).
E para onde mais podemos — e devemos — avançar?
Para discutir esses horizontes, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo realizou, nos últimos dias 14 e 15 deagosto, o "I Seminário do Eixo dos Trabalhadores LGBTQIAPN ",organizado pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão "O Trabalho Além do direito do trabalho" (NTADT-USP), composto por docentes e discentes voltados à pesquisa e à extensão universitária nos campos do direito, da política e da sociologia do trabalho, com atuação no marco dos chamados trabalhos alternativos,desregulamentados e/ou "marginalizados" (neste caso, trabalhos etrabalhadores), i.e., aqueles que não se subordinam à lógica própria do Direito do Trabalho, de feitio contratualista efordista-taylorista, e que tampouco se apropriam de suas garantias sociais. Entre os temas abordados estavam (a) o trabalho digno e as interseccionalidades, (b) a LGBTfobia corporativa e institucional, (c) a saúde laboral na perspectiva de pessoas transexuais e intersexuais, (d) o protagonismo e o empreendedorismo travestigênere e (d) o papel das empresas e das políticas públicas no enfrentamento às desigualdades e às discriminações que afetam a população LGBTQIAPN , entre outros igualmente relevantes.
Na mesma linha, o Conselho Nacional de Justiça tem desenhado políticas nacionais para promover os direitos da população LGBTQIAPN . Para tanto, criou o Fórum Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTQIA , por meio da Resolução CNJ nº582/2024, com o objetivo de atuar em três eixos principais: prevenção e enfrentamento da violência e discriminação, acesso à Justiça e promoção de direitos, e valorização da diversidade. A Resolução CNJ nº 348/2020, por sua vez, definiu parâmetros para a garantia dos direitos das pessoas LGBTQIA privadas de liberdade, incluindo a autodeclaração de identidade de gênero e orientaçãosexual, com proteção dos seus dados sensíveis.
A dignidade da pessoa LGBTQIAPN está, mais do que nunca, na ordem do dia. A igualdade perante a lei, talhada em preceito constitucional, deve transcender o limite da letra escrita, tornando-se uma realidade vívida e vivida por todas as pessoas, tornando-as substancialmente iguais, de acordo com suascaracterísticas específicas, ainda que não reproduzam padrões secularmente esperados. Outra vez e ademais, truculência e preconceito não passarão.
Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (2024-2026). Doutor, pós-doutor e livre-docente em direito. Professor associado III da Faculdade de Direito da USP. Coordenador do NTADT-USP*
Advogado em São Paulo. Mestrando em direito constitucional (PUC-SP). Colaborador externo do NTDADT-USP)**
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