
Diante da gravidade e da ampla repercussão do caso envolvendo o influenciador Hytalo Santos, o caderno Direito & Justiça entrevistou o advogado Charles Bicca, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude da OAB/DF e membro da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB. Ele detalhou a legislação vigente que protege essa parcela da população e avaliou a exposição de menores na internet
O que o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece em relação à exposição de menores de idade na internet? Oferece instrumentos eficazes para coibir situações como essa ou há lacunas na legislação?
Sempre é possível encontrar lacunas na legislação, pois ainda existe muito a ser regulamentado na internet, por exemplo, a inteligência artificial está "anos-luz" à frente de qualquer um de nós. Entretanto, sobre tal exposição indevida o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza em seu artigo 17 o respeito à integridade física psíquica e moral da criança e do adolescente, sendo que, inclusive, tipifica como crime em seu artigo 232 a submissão de criança sob autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento. Tais artigos do ECA foram, inclusive, utilizados em uma recente condenação judicial de pais a pagarem multa por "sharenting", que é a superexposição de filhos na internet pelos seus próprios pais. Vale destacar, que para situações mais graves como as descritas nesse caso do Hytalo Santos, ao menos em tese, existem diversos artigos no ECA (artigo 240 e seguintes) com previsão de penas de reclusão a quem produzir, filmar, distribuir ou armazenar cenas de sexo ou pornográficas, que são quaisquer situações envolvendo criança ou adolescente em atividades sexuais reais ou simuladas na internet.
Os pais ou responsáveis desses adolescentes que viviam com o Hytalo Santos podem ser responsabilizados por negligência ao permitirem a exposição feita pelo influenciador?
Sim, inclusive, podem responder até pelo mesmo crime, pois dependendo do caso, após a devida apuração, nos crimes de venda, disponibilização e distribuição de conteúdo de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança e adolescente, a lei não pune tão somente quem está comercializando tal material, mas sobretudo, aquele que facilita, autoriza ou intermedia efetivamente essa participação.
Qual deveria ser a atuação do Conselho Tutelar em casos como esse? Ele já teve algum papel nesse processo específico?
O Conselho Tutelar é o órgão encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Em casos como esse, deve checar as informações, fazer o registro e elaborar relatório. Comunicar à Polícia Civil, ao Ministério Público da Infância, bem como, no caso específico, ao Ministério Público do Trabalho para a apuração de denúncia de exploração sexual e trabalho infantil. É importante salientar, que nesses casos de falta ou omissão dos pais deve o Conselho Tutelar aplicar as medidas de proteção previstas no artigo 101 do ECA, que podem ser o encaminhamento aos pais, orientação, apoio, requisição de tratamento médico ou psicológico, inclusão em programa oficial de proteção ou acolhimento institucional, entre outras.
Na sua avaliação, a criação de conteúdos digitais por crianças e adolescentes deveria ser restringida ou regulada de forma mais rigorosa, considerando que, muitas vezes, isso se assemelha a uma atividade profissional? Por quê?
Sem dúvida alguma, no caso de criança, tal atividade deve, inclusive, ser proibida, visto que não devem sequer ter acesso a redes sociais, sendo um dever mínimo das empresas fazer um controle efetivo da idade dos usuários, o que sabemos que não ocorre. Atualmente, tudo indica que qualquer criança consegue se cadastrar até como adulto e abrir na hora um perfil com idade adulterada nas redes sociais. Muitas vezes, como denunciado, esse processo de monetização de conteúdo infantil é promovido pelos próprios pais ou responsáveis, em busca de "likes" à custa da imagem e dignidade dos próprios filhos. Por outro lado, os adolescentes devem ter sempre a atividade supervisionada pelos pais, cabendo às empresas o fornecimento de mecanismos de controle parental simples e efetivos, com informações sobre riscos e formas de proteção a esses menores.
As redes sociais têm dever jurídico de proteção quando o assunto envolve crianças e adolescentes? O que a lei determina nesse sentido?
O dever de proteção das nossas crianças e adolescentes é da família, da comunidade, da sociedade em geral, e essa proteção integral deve efetivamente ser assegurada pelo Poder Público, o que está previsto no artigo 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente. Vale ainda destacar, que a nossa Constituição Federal determina expressamente em seu artigo 227 que a colocação dessas crianças e adolescentes a salvo de toda a forma de negligência, exploração ou crueldade deve ter a mais absoluta prioridade, sendo assim um dever de todos.
Na sua visão, quais medidas de prevenção e fiscalização poderiam ser implementadas para evitar a repetição de casos semelhantes?
São muitas as medidas de prevenção e fiscalização que podem ser adotadas pelas empresas e várias já constam em projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Entendo que antes de tudo é preciso que tais empresas façam uma verificação efetiva da idade dos usuários que acessam suas plataformas. Precisamos que sejam desenvolvidos mecanismos mais efetivos e acessíveis de controle parental. As empresas devem verificar, excluir e armazenar para fins de apuração os conteúdos de abuso e exploração sexual. Poderiam ainda criar mecanismos mais fáceis de remoção de conteúdos violentos ou criminosos independentemente de qualquer ordem judicial.
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O que cabe ao Poder Público?
Ao Poder Público cabe promover campanhas de conscientização e educação digital, priorizando o tema com a devida urgência que o caso requer. Deve efetivamente fiscalizar toda a atividade, pois não há que se falar em censura ou muito menos em qualquer direito à privacidade quando isso viola a proteção de nossas crianças e adolescentes, pois a Constituição Federal assegura expressamente no artigo 227 que o direito desses pequenos seres humanos em formação devem ser assegurados com absoluta prioridade em nosso país.
Qual o papel da família nesse contexto?
Os pais devem acompanhar os seus filhos na internet, evitar a superexposição abusiva, monitorar os aplicativos, ter senha de acesso, instalar filtros de moderação, e se possível, até deixar escrito que está monitorando aquele perfil. Não adianta não deixar o filho ir a qualquer lugar sozinho quando se abandona esse mesmo filho no quarto fechado com uma tela sem qualquer supervisão. Vejo ainda que o mais importante é observar atentamente o comportamento dos filhos e procurar estabelecer uma relação de confiança com eles, pois assim fica muito mais fácil receber o relato de qualquer atividade suspeita. E com essa fiscalização diária e o estabelecimento de um forte vínculo com seus filhos poderão fazer do lar um local de proteção, e não de medo e insegurança.
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