
Um dos temas controversos a ser discutido no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e demais integrantes do núcleo central da trama golpista será a aplicação do tipo penal relacionado aos artigos 359-L e 359-M do Código Penal. Esses dispositivos tratam dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, introduzidos pela Lei nº 14.197/2021. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, sustenta que a tentativa e a conspiração para atingir a tomada de poder por si só já configuram crime.
Para a defesa de Bolsonaro, o enquadramento nesses tipos penais exige que tenha ocorrido emprego de violência ou grave ameaça. Nas alegações finais encaminhadas ao ministro Alexandre Moraes, os advogados Celso Vilardi, Paulo Amador da Cunha Bueno e Daniel Bettamio Tesser citam parecer jurídico elaborado pelo criminalista José Carlos Porciúncula, contratado para uma avaliação do caso pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Em entrevista ao Direito&Justiça, Porciúncula — doutor em direito penal pela Universidade de Barcelona, com período de pesquisa autoral na Universidade de Bonn — explica seu ponto de vista sobre a denúncia da PGR. Segundo ele, que é professor do programa de pós-graduação em ciências criminais do IDP, para a configuração da tentativa, é imprescindível a demonstração da existência de atos executórios, que, em tais delitos, estão necessariamente associados ao emprego de violência ou grave ameaça.
Pela primeira vez, o STF vai julgar uma denúncia contra um ex-presidente da República por tentativa de golpe de Estado. O que esperar desse momento histórico?
Trata-se, indubitavelmente, de um desafio de superlativa magnitude. De qualquer sorte, espero que o Supremo Tribunal Federal, fiel à sua virtuosa e luminosa tradição histórica, possa realizar um julgamento estritamente técnico — e não político — da questão. Se isso ocorrer, estou convicto de que a conclusão da Excelsa Corte não poderá ser outra que não o reconhecimento da atipicidade dos fatos narrados na denúncia. Assim o demonstra a dogmática jurídico-penal, enquanto ciência da distinção entre direito e poder.
A questão do tipo penal relacionado à denúncia (Artigos 359-L e 359-M do Código Penal) em tramitação no STF é um dos pontos contestados pela defesa. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, sustenta que a tentativa já é crime. Como enxerga essa questão?
Em recente parecer que elaborei sobre o caso, por solicitação do senador Flávio Bolsonaro, tive a oportunidade de esclarecer a questão em apreço. Com efeito, os crimes capitulados nos arts. 359-L e 359-M do Código Penal enquadram-se, de forma inequívoca, na categoria dos denominados "delitos de atentado" ou "delitos de empreendimento". Em tais hipóteses, está-se diante de tentativas especificamente tipificadas como delitos formalmente consumados. Em outras palavras: tais delitos não requerem, para a sua consumação, a efetiva ocorrência do resultado perseguido — a saber, a abolição do Estado Democrático de Direito e a deposição do governo eleito —, bastando, para tanto, a tentativa de fazê-lo. Até aqui, nenhuma divergência com o eminente professor Paulo Gonet. Cumpre salientar, entretanto, que, para a configuração da tentativa, é imprescindível a demonstração da existência de atos executórios, que, em tais delitos, estão necessariamente associados ao emprego de violência ou grave ameaça. E aqui está o cerne da questão: no tocante à quase totalidade dos episódios narrados na denúncia, não há que se falar na ocorrência de violência ou grave ameaça.
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A invasão e depredação da Praça dos Três Poderes também não poderiam ser consideradas atos de violência?
Não, em absoluto. A violência exigida pelos crimes tipificados nos artigos 359-L e 359-M deve ser compreendida como vis absoluta, ou seja, força física real dirigida contra pessoa(s), jamais podendo ser confundida com depredações patrimoniais, mesmo que significativas financeiramente. O dano a prédios públicos, per se, não constitui violência no sentido técnico-jurídico exigido pela norma penal incriminadora. A tentativa de equiparar "violência" a atos de vandalismo ou destruição de bens públicos caracteriza o uso de analogia in malam partem.
E no que se refere às condutas perpetradas pelos manifestantes do 08 de janeiro em relação a policiais e jornalistas?
Esse é um dos poucos episódios narrados na denúncia em que parece vislumbrar-se a ocorrência de violência ou grave ameaça. Entretanto, isso não deve conduzir-nos, sic et simpliciter, à conclusão de que estariam configurados os crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e de tentativa de golpe de Estado. Isso porque ainda é preciso verificar se a violência e a grave ameaça praticadas mostravam-se idôneas, isto é, objetivamente aptas para a consecução daquelas finalidades. Ora, um homem médio, conhecedor das regras gerais da experiência e da forma com que os eventos regularmente se desenvolvem, saberia perfeitamente que, na contemporaneidade, revoluções não são feitas com paus, pedras, estilingues e — sem qualquer ironia — batom, mas sim com armas de fogo, comandos militares e ocupações estratégicas de centros de poder. Ademais, teria plena consciência de que a democracia brasileira atingiu um nível de maturidade e estabilidade institucional tal que não poderia ver-se ameaçada por acontecimentos dessa natureza. Por isso, no parecer que preparei para o caso, concluí pela manifesta inidoneidade de tais condutas.
O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, também sustenta que, se tivesse havido o golpe, não haveria julgamento, tampouco STF. O que o legislador quis, na sua visão, estabelecer com a Lei 14.197/2021, que revogou a antiga Lei de Segurança Nacional?
Como já assinalei, os delitos de atentado ou empreendimento não exigem, para a sua consumação, a efetiva ocorrência do resultado almejado, bastando, para tanto, a mera tentativa de alcançá-lo. Essa técnica de antecipação da punibilidade explica-se por dois motivos: em primeiro lugar, pela máxima importância dos bens jurídicos tutelados; ademais, pela extrema dificuldade ou mesmo impossibilidade prática de se punir tais crimes caso houvesse a consumação. Entretanto, ainda assim é preciso constatar a existência de atos executórios de tais delitos. Sem isso não há tentativa. Eis o problema!
A denúncia cita um plano de assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes. Não estaria caracterizada aí a violência ou grave ameaça?
A sua pergunta já contém a resposta para o problema formulado. Por mais reprováveis que sejam sob o prisma moral, discursos, reuniões ou mesmo supostos planos para a deposição do governo constituído ou que visem à abolição do Estado Democrático de Direito não são puníveis, por consubstanciarem meros atos preparatórios dos delitos tipificados nos arts. 359-L e 359-M do Código Penal. Ao contrário do que se verifica em países como Estados Unidos ou Alemanha, o ordenamento jurídico pátrio não pune atos preparatórios de delitos dessa natureza.
Acredita que já há uma convicção formada sobre a denúncia por parte dos ministros?
Penso que alguns dos eminentes ministros já têm convicção formada. Outros, porém, parecem ainda ponderar sobre a complexidade do caso. De qualquer sorte, o mais importante, a meu ver, é que a Suprema Corte conduza o seu julgamento em observância ao princípio da estrita legalidade. Flexibilizar os estreitos limites dos tipos penais em apreço constituiria, a meu sentir, um grave equívoco. Seria até mesmo paradoxal pretender defender o Estado Democrático de Direito violando, justamente, um dos seus pilares fundamentais: a legalidade.
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