
O Supremo Tribunal Federal (STF) promoveu, na última segunda-feira (06/10), uma audiência pública para discutir os desafios econômicos e sociais da "pejotização" no Brasil — quando uma empresa contrata um trabalhador autônomo como empresa, um microempreendedor individual para prestar serviços, sem levar em conta os benefícios previstos na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
O debate foi travado para auxiliar uma tomada de decisões dos ministros do STF, em processo sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, no âmbito do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1532603. Em abril, Gilmar suspendeu todos os processos em tramitação sobre o tema, até que o STF decida a questão em repercussão geral.
Esse tipo de contrato é comum em diversos setores, como representação comercial, corretagem de imóveis, advocacia associada, saúde, artes, tecnologia da informação, entregas por motoboys, entre outros. Mas a decisão do STF pode alterar todas as relações de trabalho do país, segundo a avaliação de especialistas.
Estão em questão alguns pontos: a competência da Justiça do Trabalho para julgar casos que envolvam alegação de fraude em contratos civis; a legalidade desses contratos; e o ônus da prova nas hipóteses em que se questiona a validade desses vínculos trabalhistas.
A audiência pública teve sete horas de duração e contou com 48 participantes que manifestaram diversos pontos de vista sobre o tema. "Saímos deste encontro devidamente informados, mais sensíveis aos desafios apresentados e ainda mais comprometidos com a busca por soluções justas, inovadoras e viáveis", o relator.
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O advogado-geral da União, Jorge Messias, definiu a pejotização como uma "cupinização" dos direitos trabalhistas, que "corrói por dentro, silenciosamente, as estruturas que sustentam a proteção social". Para Messias, o país deve construir um modelo que "respeite a liberdade econômica, mas que também preserve o trabalho digno, a proteção previdenciária e a solidariedade entre as gerações". Em seu pronunciamento, ele citou a MPB: "Como disse Chico Buarque em sua fortíssima canção Construção, 'cada passo deu como se fosse o último'. A pejotição faz do trabalho essa travessia exaustiva, onde o esforço humano é consumido até o limite e o trabalhador é substituído sem deixar limites".
Ao participar da audiência, a OAB defendeu a competência da Justiça do Trabalho para discutir o tema. A secretária-geral do Conselho Federal da OAB, Rose Morais chamou a atenção de que o STF está diante de uma questão que impacta diretamente o cotidiano de milhões de trabalhadores e, também, o ambiente de negócios. "Entre 2020 e 2025, foram ajuizadas 1,2 milhão de ações trabalhistas pleiteando o reconhecimento de vínculo de emprego. Ou seja, tivemos um aumento de 8,3% de casos novos. Esses dados são divulgados pelo Ministério Público do Trabalho e revelam que estamos diante de um fenômeno estrutural e, portanto, exige também uma solução estrutural", alertou.
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Palavra de especialistas:
- Autonomia das partes
A pejotização tornou-se o tema mais relevante do direito do trabalho nas últimas décadas, por desafiar frontalmente o conceito clássico de empregado previsto na CLT. Trata-se da contratação de pessoas físicas por meio de pessoas jurídicas, modelo expressamente previsto no §2º do artigo 4º-A da Lei nº 6.019/74 e já validado pelo STF em decisões individuais. A tendência da Corte é consolidar a licitude dessa forma contratual, privilegiando a autonomia das partes e a liberdade empresarial.
O impacto potencial é profundo: empresas poderão operar inteiramente sem empregados, apenas com prestadores PJ. Isso redesenha a estrutura do mercado de trabalho, com efeitos avassaladores sobre pilares como FGTS, INSS e demais encargos trabalhistas. A pejotização, se amplamente validada, pode levar à extinção da figura tradicional do vínculo empregatício em diversos setores.
A discussão jurídica não se limita à licitude formal da contratação, mas à análise da validade do consentimento. A jurisprudência tem adotado o critério da hipossuficiência e hipersuficiência para distribuir o ônus da prova: presume-se fraude quando o prestador é vulnerável, e presume-se liberdade de escolha quando ele é altamente qualificado e bem remunerado.
O grande desafio será definir os limites dessa nova realidade. O STF poderá, por exemplo, restringir a pejotização a trabalhadores com remuneração acima de determinado patamar, evitando que a prática se torne um instrumento de precarização. Em um cenário de validação ampla, o modelo tradicional de emprego poderá se tornar exceção — com profundas implicações econômicas, sociais e previdenciárias.
Fabio Chong De Lima, sócio do L.O. Baptista responsável pela área de Direito Trabalhista. Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem especialização em direito e relações de trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
- Risco de virar anteparo para ilegalidades
Eventual reconhecimento, pela justiça do trabalho, de vínculo empregatício de trabalhador “pejotizado” certamente acarretará consequências em várias esferas. Além da determinação de assinatura da carteira de trabalho e pagamento de parcelas ligadas ao contrato formal, a exemplo de férias indenizadas acrescidas do terço legal, décimo terceiro salário, FGTS e INSS, entre outros – prejuízo que pode ser vultoso –, as consequências da descaracterização da “pejotização” se capilarizam para outras searas, a exemplo dos âmbitos penal (vide artigo 203 do Código Penal) e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.