Visão do Direito

Atalhos e retalhos na tributação da renda

Aumentar de forma descoordenada a tributação de dividendos, aplicações financeiras e investimentos estrangeiros desestimula a formação de capital, fragiliza a competitividade e reacende velhos fantasmas, como a distribuição disfarçada de lucros

Hamilton Dias de Sousa, sócio-fundador do Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em direito tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Luis Felipe Vieira Rangel, advogado de Dias de Souza Advogados Associados, mestre em direito tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) -  (crédito: Divulgação)
Hamilton Dias de Sousa, sócio-fundador do Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em direito tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Luis Felipe Vieira Rangel, advogado de Dias de Souza Advogados Associados, mestre em direito tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) - (crédito: Divulgação)

Por Hamilton Dias de Sousa, sócio-fundador do Dias de Souza Advogados, mestre em direito tributário pela USP; e Luis Felipe Vieira Rangel, advogado de Dias de Souza Advogados, mestre em direito tributário pela FGV

Nos últimos meses, o governo federal apresentou, em paralelo, um projeto de Lei Ordinária (PL 1.087/2025), um Projeto de Lei Complementar (PLP 182/2025) e uma medida provisória (MP 1.303/2025) com forte impacto sobre a tributação da renda, das aplicações financeiras e dos dividendos. A leitura conjunta desses textos revela um cenário preocupante: a arrecadação como objetivo central, sem um mínimo de coordenação legislativa ou análise séria dos seus efeitos econômicos.

O PL 1.087/2025 amplia a faixa de isenção do IRPF, mas compensa a renúncia instituindo um "Imposto de Renda mínimo" e a retenção de 10% sobre dividendos distribuídos a pessoas físicas e a não residentes. O modelo resulta em sobreposição de incidências, restituições vultosas e tardias, incentivo à litigiosidade e risco de as empresas reterem lucros em vez de distribuí-los.

Paralelamente, a MP 1.303/2025 cria uma alíquota uniforme de 17,5% para rendimentos de aplicações financeiras e ativos virtuais, alterando profundamente a tributação de fundos, derivativos e criptoativos. O texto, editado sem debate prévio, não dialoga com o projeto sobre IRPF: ambos incidem sobre rendimentos de capital, mas partem de premissas, alíquotas e mecanismos de apuração distintos, aumentando a opacidade do sistema.

Some-se a isso o PLP 182/2025, que mexe em pilares da legislação complementar da renda, mas também sem a devida coordenação com as medidas anteriores. O resultado é um mosaico de normas que se sobrepõem sem lógica comum. A falta de critérios mínimos sobre quando tratar o tema por lei ordinária, complementar ou medida provisória expõe um desrespeito às definições de competências normativas e mina a segurança jurídica.

Vale lembrar que essa lógica de solavancos não começou agora. A Lei 14.754/2023 já havia redesenhado, de modo abrupto, a tributação dos fundos exclusivos e das aplicações no exterior por pessoas físicas, com a introdução de come-cotas semestral, regras de transparência/antecipação do IR sobre rendimentos no exterior e regimes de transição complexos. Menos de dois anos depois, a MP 1.303 volta a mexer nas mesmas bases sem qualquer articulação com o IRPF do PL 1.087. O efeito combinado é um sistema que prioriza caixa no curto prazo e transfere ao contribuinte os custos, inclusive, de compliance.

O contraste com a reforma do consumo é evidente. A Emenda Constitucional 132/2023 e a LC 214/2025 foram fruto de amplo debate, com desenho institucional claro e discussão sistemática de impactos sobre setores e entes federados. Ainda assim, há inúmeras questões em aberto e problemas no horizonte. Ora, o que esperar no caso da renda, quando o que se tem é apenas o improviso? Esse fica explícito com as propostas, que não dialogam entre si, não enfrentam a calibragem entre pessoa jurídica e física e que se apoiam em estimativas frágeis.

As consequências econômicas são sérias. Aumentar de forma descoordenada a tributação de dividendos, aplicações financeiras e investimentos estrangeiros desestimula a formação de capital, fragiliza a competitividade e reacende velhos fantasmas, como a distribuição disfarçada de lucros. Afeta-se, ainda, a previsibilidade dos fluxos de caixa de empresas e investidores, com impacto sobre emprego, consumo e formalização.

O país não precisa de puxadinhos arrecadatórios, mas de uma reforma coordenada da renda. Um projeto elaborado por comissão técnica independente, capaz de pensar a integração entre pessoa jurídica e pessoa física, o tratamento de rendimentos do capital, as peculiaridades setoriais e a competitividade internacional, seguido de debate aprofundado no Congresso. Esse é o caminho responsável, transparente e compatível com os princípios constitucionais de simplicidade, neutralidade e capacidade contributiva. Do improviso, é possível esperar somente mais litígios, menos investimentos e maior desconfiança. O Brasil conhece o preço dessa receita.

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postado em 09/10/2025 04:00
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