Visão do direito

Memória da escravidão: o Judiciário diante do espelho da história

As desigualdades raciais, os índices de pobreza e o acesso desigual à Justiça são reflexos diretos dessa herança

 Eixo Capital. Alexandre Teixeira de Freitas Bastos Cunha, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Grupo de Trabalho Memória da Escravidão e da Liberdade -  (crédito:  Divulgação )
Eixo Capital. Alexandre Teixeira de Freitas Bastos Cunha, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Grupo de Trabalho Memória da Escravidão e da Liberdade - (crédito: Divulgação )

Por Alexandre Teixeira de Freitas Bastos Cunha, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Grupo de Trabalho Memória da Escravidão e da Liberdade

O Brasil ainda não superou a escravidão. Ela não é apenas um fato do passado, mas um sistema de opressão que deixou marcas profundas nas instituições e nas relações sociais. As desigualdades raciais, os índices de pobreza e o acesso desigual à Justiça são reflexos diretos dessa herança. Enfrentar esse passado é reconhecer que o racismo segue estruturando o presente.

Foi com esse propósito que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou, pela Portaria nº 337/2024, o Grupo de Trabalho Memória da Escravidão e da Liberdade, tendo por objetivo preservar, organizar e difundir o acervo documental do Poder Judiciário relacionado à escravidão, à resistência e à luta por liberdade de africanos e seus descendentes. A iniciativa afirma um princípio simples: não há justiça sem memória.

O grupo reuniu magistrados, professores, procuradores, historiadores e arquivistas. Dividido em seis eixos, o trabalho abrangeu desde a valorização da memória afrodescendente até a digitalização de documentos históricos, o acesso público aos acervos e a formulação de políticas de reparação e educação. As reuniões começaram em novembro de 2024 e contaram com a colaboração técnica do Programa Justiça Plural (CNJ/Pnud). O relatório final acaba de ser divulgado. A pesquisa nacional realizada pelo grupo ouviu 96 tribunais brasileiros.

Os resultados mostram que apenas 14 possuem políticas específicas de preservação de acervos dos séculos XVIII e XIX, e apenas oito tratam diretamente de documentos relacionados a pessoas escravizadas. Por outro lado, 30 tribunais realizam ações educativas e culturais, e 39 mantêm acervos históricos em espaços próprios. Os Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Maranhão, São Paulo e Rio de Janeiro se destacam pelas boas práticas de conservação e digitalização.

Esses documentos revelam histórias ocultas. Ações de liberdade, inventários e registros judiciais mostram o protagonismo de pessoas negras que buscaram na Justiça o reconhecimento de sua humanidade. Cada processo é uma vida reconstruída, uma voz que resiste ao esquecimento. Preservar essa memória é um ato de justiça e de reparação.

O relatório final do GT propõe medidas permanentes: criação de um portal digital de acesso público, capacitação de servidores e magistrados em justiça racial, parcerias com universidades e comunidades quilombolas, além da inclusão do tema em programas de formação e educação. A meta é transformar os arquivos do Judiciário em instrumentos de cidadania e consciência histórica.

Essa política está em sintonia com a Convenção Interamericana contra o Racismo, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 18) e o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Mais do que conservar documentos, trata-se de reconhecer responsabilidades e afirmar valores democráticos. A memória é parte do processo de reparação coletiva.

Ao assumir o papel de guardião da memória, o Judiciário olha para o próprio espelho da história. Durante séculos, foi também espaço da negação da liberdade. Hoje, pode ser o território da reparação. Nesse sentido, a iniciativa se soma ao trabalho desenvolvido pelo Fórum Nacional do Poder Judiciário para o Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo (Fontet), criado em 2015 no âmbito do CNJ, voltado ao enfrentamento da exploração da escravidão contemporânea e do tráfico de pessoas.

Cada documento preservado é uma lembrança que resiste e um compromisso com o futuro.

Lembrar é um ato político. Preservar é fazer justiça. E justiça, nesse caso, significa devolver voz, história e dignidade a quem o tempo tentou apagar. Oxalá, com isso, o Brasil consiga superar a triste chaga do trabalho análogo ao de escravo que ainda teima em existir.

 

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postado em 16/10/2025 04:00
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