
Por Anderson Almeida* e Roberto Livianu** — No imaginário popular, a corrupção é uma prática odiosa, restrita a funcionários públicos ambiciosos, que, sem nenhum escrúpulo, fazem uso abusivo do poder visando obter todo tipo de vantagem. A realidade é bem menos maniqueísta. A começar pela crença de que a corrupção está restrita à máquina pública. Se existe um servidor corrupto na outra ponta da transação está o corruptor, que invariavelmente pertence ao setor privado.
A corrupção entre entes privados também está incrustada na nossa cultura. E pior: sem nenhuma previsão legal para punir os malfeitores. Não temos uma tipificação penal específica para punir os corruptos do setor privado e nossa cultura decompliance ainda é incipiente.
No Brasil, a legislação em vigor criminaliza o suborno entre empresas apenas de forma indireta. Não existe previsão de incriminação específica para a corrupção privada, ou seja, o ato de oferecer ou receber vantagem indevida entre particulares. Esse hiato normativo impede a punição de condutas flagrantes que não envolvem agentes públicos, criando um vácuo jurídico que torna o país vulnerável a práticas corruptas sem penalidade direta, deixando-as impunes.
Para se ter ideia de como nosso país precisa se atualizar nessa matéria, na Inglaterra a corrupção privada é criminalizada desde 1906 e coloca o ato de suborno público e privado no mesmo patamar normativo. A Alemanha e a Itália possuem legislação similar, o caso italiano é mais recente — o regramento foi aprovado em 2002.
Exemplos robustos
Um dos regramentos mais rigorosos no combate à corrupção é o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), dos Estados Unidos. A lei está em vigor desde 1977, mas tem sido aplicada desde 2004 para aplicar multas milionárias a empresas flagradas em atos de corrupção.
Além da penalidade monetária, o FCPA também possui um viés muito forte de relações públicas, já que companhias flagradas em atos de corrupção têm sua imagem e reputação manchadas, dificuldade na prospecção de novos mercados e o fechamento de novos negócios.
Em suma, o FCPA proíbe empresas norte-americanas ou estrangeiras que tenham papéis negociados no país, além de seus funcionários — americanos ou não — de prometer ou autorizar pagamentos a servidores públicos estrangeiros para obter vantagem nos negócios. O regramento também pune lavagem de dinheiro. Para que a competência da Justiça dos Estados Unidos seja atraída, basta que qualquer dessas operações criminosas tenham passado pelo sistema financeiro estadunidense.
O pós-Lava-Jato
A partir do momento em que a Operação Lava-Jato explodiu, o corpo político reagiu, especialmente a partir da apresentação das 10 Medidas Contra a Corrupção, sendo nítido que nestes últimos 10 anos fomos ladeira abaixo no combate à corrupção.
Percebe-se isso na mudança da Lei de abuso de autoridade, que teve nítido objetivo de retaliação contra magistrados e membros do MP. Igualmente no sucateamento da Lei de improbidade pela lei 14230/21, pela recente aprovação do PL Dani Cunha, que enfraquece a Lei da Ficha Limpa, pelas Anistias aos Partidos e ainda se fala em PEC da Blindagem Política. Isso nos permite compreender porque a corrupção é a principal angústia dos brasileiros segundo reiteradas pesquisas.
Não obstante se observe a busca pela obtenção da impunidade garantida por lei, vez por outra, surgem algumas propostas, no âmbito da criminalização da corrupção privada, mas sem foco e sem política criminal. Uma das mais recentes é o PL 4.436/2020, de autoria do senador Marcos do Val (Podemos-ES), que foi aprovado em março de 2024 pela Comissão de Constituição e Justiça e que atualmente está aguardando que um relator seja designado. A iniciativa busca alterar o Código Penal para tipificar o crime de corrupção entre particulares.
Já o PL 4.628/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), também tipifica a corrupção privada. O PL cria um tipo penal que prevê pena de dois a cinco anos de prisão e multa para o empregado ou representante de empresa privada que oferecer ou aceitar vantagem indevida. O PL 1469/2023, de autoria do senador Ciro Nogueira (PP-PI) propõe a inclusão do artigo 160-A no Código Penal para criminalizar diretamente a corrupção entre particulares.
Por fim, o PL 576/2023 do deputado federal Kim Kataguiri (União-SP), defende a criação do delito de corrupção privada nas modalidades ativas e passivas. O regramento também propõe a inclusão na lei da figura do "administrador privado" ou "controlador de pessoa jurídica" para delimitar sem sombras de dúvidas o sujeito do crime que passará a ser punido.
Na justificativa, o parlamentar argumenta que enquanto a corrupção pública dispõe de mecanismos de combate no ordenamento jurídico brasileiro, o mesmo não ocorre com crimes ocorridos na esfera privada.
Compliance e amadurecimento
O combate à corrupção privada no Brasil só vai avançar significativamente quando tomadores de decisão, servidores públicos e políticos decidirem encarar a questão de modo menos utilitarista. Um ambiente de negócios tomado por prática de corrupção privada distorce o princípio da livre concorrência e vicia o processo de crescimento das empresas.
É preciso criar uma cultura empresarial que privilegia regras claras decompliance e um ambiente normativo em que fique claro que o caminho dos crimes na iniciativa privada levará as empresas a crises tanto de imagem como financeiras, colocando isto no DNA dos negócios.
Também será necessário que o viés do combate à corrupção possa ser ampliado. É necessário compreender que, um comprador de insumos de um hospital, por exemplo, que aceita propina para fechar com um fornecedor cujo produto é inferior, coloca em risco toda a cadeia produtiva, a vida dos pacientes e gerar uma crise de imagem irrecuperável.
Em um cenário bem regulado, todo empresariado se sente instigado a obedecer a regras e toda a cadeia e a economia do país ganham com isso. A disputa empresarial justa é o principal meio de seleção de negócios.
No cenário competitivo global, regras de conformidade são imperativas. E se, por acaso, a corrupção privada ainda é pouco combatida no Brasil, empresas brasileiras estão expostas a regramentos estrangeiros. Prova disso são as pesadas multas aplicadas a Odebrecht e a Petrobras pela Justiça dos Estados Unidos, sem os Departamentos de Operações Estruturadas.
Advogado criminalista*
Procurador de justiça do MPSP, doutor em direito pela USP e presidente do Inac**
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