
Por Pablo Coutinho Barreto* e Igor Morais Vasconcelos** — Roberto, 34 anos, negro, perdeu o emprego de auxiliar de cozinha quando o restaurante fechou na pandemia. Três meses depois, perdeu o quarto alugado. Dormiu na casa de conhecidos até que as portas se fecharam. Há oito meses vive embaixo do viaduto da Rodoviária.
A história de Roberto se repete 309.998 vezes no Brasil — número oficial do CadÚnico em setembro de 2024, crescimento de 1.250% desde 2013. No Distrito Federal, são cerca de 3.000 pessoas.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu esse fenômeno como estado de coisas inconstitucional na ADPF 976. A resposta do Judiciário veio com a Resolução CNJ 425/2021 e sua atualização pela Resolução 605/2024: comitês locais, mutirões e um índice nacional de implementação. Mas como assegurar moradia adequada para mais de 300 mil pessoas num país com deficit habitacional de 6 milhões de domicílios?
A resposta passa pela coordenação institucional e pode ser potencializada pela inteligência artificial.
Três movimentos simultâneos
A estratégia articula identificação precoce, priorização justa e medição de resultados.
Sistemas de análise de dados detectam sinais de risco — aviso de despejo, perda de renda, alta hospitalar sem encaminhamento, rompimento de vínculos familiares — permitindo que equipes organizem rotas de busca ativa antes que a situação se agrave.
A priorização usa algoritmos que combinam urgência, severidade da vulnerabilidade, tempo de espera e potencial de impacto. Há componente de equidade: quando grupos específicos ficam sistematicamente para trás, o sistema ajusta a fila. Toda decisão algorítmica é revisável por humanos e contestável pela pessoa atendida.
Os indicadores medem quatro avanços: tempo entre alerta e atendimento; percentual de documentação civil emitida; acesso efetivo a benefícios e serviços; e retenção de moradia em seis e 12 meses. Painéis públicos permitem comparar territórios e identificar gargalos.
IA como ferramenta de coordenação
Experiências internacionais demonstram o potencial. Chicago usa modelos preditivos para identificar famílias vulneráveis a perder moradia, permitindo intervenção com subsídio de aluguel antes da crise. Camden, no Reino Unido, analisa indicadores financeiros, de saúde e escolares para prever riscos e intervir precocemente. Vancouver integra dados de saúde, assistência social e emergência para coordenar atendimento.
Melbourne mapeia concentrações populacionais para otimizar recursos. A Finlândia aplica análise preditiva aos dados de bem-estar social.
No Brasil, a integração entre CadÚnico, SUS, sistema de justiça e segurança pública pode viabilizar soluções semelhantes. Chatbots com reconhecimento de voz facilitam acesso a informações sobre abrigos e benefícios, mesmo para pessoas com baixa alfabetização digital.
Plataformas conectam necessidades específicas a recursos disponíveis em tempo real.
Moradia primeiro
A política "Moradia Primeiro" orienta as ações: acesso imediato à habitação, escolha da pessoa respeitada, serviços de apoio junto à moradia, sem pré-requisitos para entrada. Não se exige estabilidade psicológica ou abstinência. A filosofia privilegia autonomia, liberdade e redução de danos.
Desafios e salvaguardas
Sistemas algorítmicos exigem vigilância contra vieses. População em situação de rua no Brasil é majoritariamente negra (69%), masculina (84%), com renda mensal inferior a R$ 109 (84%) e baixa escolaridade (42% sem ensino médio completo, 11% em analfabetismo).
Algoritmos treinados em dados históricos podem perpetuar desigualdades estruturais. Auditoria constante, diversidade nas equipes de desenvolvimento e participação das pessoas atendidas no desenho dos sistemas são cruciais.
Três compromissos verificáveis
Primeiro: ações locais operantes e coordenadas em nível regional e nacional. Segundo: metas públicas para os quatro indicadores-chave, com divulgação mensal. Terceiro: avaliação independente para comparar territórios e corrigir rotas.
Tecnologia amplifica coordenação, mas não substitui escuta. A escolha informada, linguagem cidadã e equipes de referência evitam que política vire labirinto. Inteligência artificial é meio; dignidade é fim.
O teste decisivo: quando a certidão chega, fila anda e rua deixa de ser endereço. Quando Roberto recebe CPF, consegue emprego e mantém moradia por um ano, a Constituição sai do papel. Isso é inovação social a serviço da inclusão. Isso é justiça que transforma destinos.
Procurador regional da República e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, doutorando em direito*
Professor de Inteligência Artificial e Doutorando em Gestão Pública**
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