
Por Marcus Vinicius Furtado Coêlho* — Não foi por acaso que a Constituição de 1988 consagrou o princípio da capacidade contributiva. Ele é um dos pilares da ordem fiscal justa, orientando a tributação segundo a aptidão econômica de cada cidadão. Tributar é uma necessidade do Estado, mas essa cobrança deve respeitar limites constitucionais, morais e sociais. O que se arrecada não pode ultrapassar aquilo que a realidade econômica permite, e muito menos comprometer a dignidade de quem paga.
A omissão na atualização da tabela do Imposto de Renda da pessoa física ao longo dos últimos anos contrariou frontalmente esse princípio. Enquanto a inflação reduzia o poder de compra, o limite de isenção permanecia estagnado, empurrando para a base do sistema milhares de brasileiros que não tinham renda real acrescida. O sistema passou a tributar não a riqueza acumulada, mas o esforço de manter o mínimo diante da corrosão monetária. A cada exercício fiscal sem reajuste, aprofundava-se uma distorção que parecia técnica, mas era essencialmente constitucional.
Essa anomalia foi naturalizada por tempo demais. A ausência de reação institucional permitiu que se consolidasse um modelo regressivo, em que os que menos têm passaram a arcar com parcela crescente da carga tributária. E o mais grave: sob o pretexto de manutenção da estrutura fiscal, esvaziou-se o conceito de justiça na arrecadação. O que deveria ser uma política de equilíbrio tornou-se uma engrenagem de punição silenciosa da renda do trabalho.
Foi com esse entendimento que, em 2014, quando eu estava na presidência do Conselho Federal da OAB, a entidade propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5096, que levou ao Supremo Tribunal Federal o debate sobre a constitucionalidade da omissão em corrigir a tabela do IRPF. A tese era clara: a ausência de correção monetária anual, em linha com a inflação, violava a legalidade tributária, o princípio da isonomia e o respeito ao mínimo existencial. Foi sustentado, com base na Constituição, que tributar sem atualizar os parâmetros era uma forma indireta de confisco.
A ADI 5096 materializou uma atuação institucional importante da OAB sobre o tema. Ao levar ao Supremo Tribunal Federal a discussão sobre a ausência de correção da tabela do Imposto de Renda, a entidade posicionou-se de forma clara e técnica na defesa da coerência entre a prática arrecadatória e os limites constitucionais. Foi uma iniciativa que conferiu densidade jurídica a um problema historicamente ignorado pelo Estado. A provocação ao STF visava afirmar que o sistema fiscal não pode ser capturado pela inércia, tampouco pela conveniência orçamentária. O contribuinte não pode arcar com os custos da omissão legislativa, nem pode ser transformado em alvo preferencial da máquina arrecadatória.
Essa iniciativa não buscava protagonismo, tampouco privilegiar uma categoria. Tratava-se de um gesto institucional em defesa da coerência entre o texto constitucional e a prática tributária. A tabela desatualizada representava mais do que um equívoco técnico: ela simbolizava a falência de um pacto. E quando o Estado ignora seus próprios limites, cabe às instituições constitucionais atuar.
Agora, em 2025, o debate em torno da ampliação da faixa de isenção ressurge com maior força, diante da iminência de sua aprovação no Congresso Nacional. É uma vitória importante, ainda que tardia. E é também a confirmação de que a crítica jurídica apresentada pela OAB, há mais de uma década, não apenas se sustentava: era necessária. A pauta amadureceu, e os fundamentos que a originaram permanecem válidos. Corrigir a tabela é uma forma de devolver racionalidade ao sistema e, principalmente, restituir justiça ao contribuinte.
A justiça fiscal não pode ser episódica. Ela precisa ser estruturante. Exige um modelo progressivo, estável e transparente. A arrecadação deve ser instrumento de financiamento do Estado, não mecanismo de desigualdade institucionalizada. É fundamental que a legislação tributária reflita a realidade da sociedade e que os mecanismos de correção sejam automáticos, previsíveis e vinculados a parâmetros técnicos.
Corrigir a tabela do Imposto de Renda não é um benefício. É dever do Estado. E reconhecer a omissão não é admitir erro, mas reconhecer que a Constituição exige mais do que silêncio diante da injustiça. O que a OAB fez ao provocar o Supremo foi colocar esse dever em movimento. E o que o país faz agora, ao rever os critérios de isenção, é um passo necessário para que a tributação volte a se alinhar ao princípio da capacidade contributiva.
A justiça fiscal começa quando a renda deixa de ser punida. Quando o salário não é confundido com privilégio. Quando a sobrevivência não é tratada como base de cálculo. Quando as garantias constitucionais são levadas a sério. E quando o sistema tributário se reconcilia com sua razão de existir: financiar o Estado com equidade, não explorar o contribuinte por conveniência política.
Advogado, doutor em direito processual, ex-presidente nacional da OAB e atual presidente da Comissão Constitucional da OAB*
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