Entrevista

Advogado das liberdades: entrevista com o criminalista Técio Lins e Silva

Com mais de seis décadas de atuação, o criminalista Técio Lins e Silva revisita sua trajetória, comenta o cenário político-jurídico do país e reflete sobre os desafios atuais do Estado Democrático de Direito

Técio Lins e Silva
 -  (crédito: Arquivo pessoal )
Técio Lins e Silva - (crédito: Arquivo pessoal )

O criminalista Técio Lins e Silva, 80 anos, está na atividade jurídica há mais de 60 anos. Começou antes mesmo de obter a carteira da OAB, o que ocorreu em 1969. O pai, advogado Raul Lins e Silva, defendia estudantes nos anos de chumbo e, temendo que o filho caísse na luta armada, levou Técio para auxiliá-lo no escritório. Assim, ele começou a trajetória, defendendo a sua geração a ter acesso à universidade. Desde então, atuou em várias causas — em nome do Estado Democrático de Direito e das garantias individuais.

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Foi conselheiro da OAB do Rio de Janeiro e do Conselho Federal da Ordem por vários biênios. Ocupou o cargo de secretário de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, entre 1987 e 1990, no governo de Moreira Franco. Foi conselheiro do CNJ (2007/2010) e membro da Comissão de Juristas do Senado para a reforma da Lei de Execução Penal, em 2013. Também exerceu a Presidência do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros), por dois mandatos, de 2014 a 2018. Hoje é procurador-geral do município de Niterói (RJ).

Em 1985, durante o governo Sarney, Técio foi presidente do Conselho Federal de Entorpecentes, no Ministério da Justiça. Anos antes, durante a ditadura, defendeu perseguidos políticos e outras vítimas do regime militar.

Um de seus casos de maior repercussão foi a defesa do playboy Doca Street que assassinou a companheira, a socialite Angela Diniz, com três tiros. A tese alegada foi a legítima defesa da honra, que hoje em dia é considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

O senhor acredita que o sistema de justiça brasileiro vive hoje um processo de judicialização excessiva da política?

Não há nenhuma novidade nisso. O sistema de justiça se comporta sempre como um reflexo do momento político, cultural, institucional ou o que seja. Na ditadura, a Justiça Militar da União era o reflexo do momento difícil que vivíamos no país. Mas coube aos advogados influir para que a Justiça se aproximasse o mais possível do seu ideal. A luta persistente dos advogados brasileiros, que resistiram aos abusos praticados ao longo daqueles anos de chumbo, foi fundamental para a democracia que veio mais tarde.

Como avalia o momento em que o país passa de condenação de um ex-presidente e de cinco oficiais de alta patente por atentarem contra a democracia?

Sinal de maturidade na consolidação da legalidade obtida no processo de redemocratização iniciado em 1985. São 40 anos de amadurecimento, não é pouco tempo.

O senhor defendeu perseguidos na ditadura militar. Acha que o Brasil está reconstruindo a sua história?

Estamos reconstruindo a nossa história desde que lutamos com as armas do direito e a consciência da resistência democrática perante os tribunais do país. A História ainda contará melhor o que os poucos advogados brasileiros, que defenderam os perseguidos políticos, significaram para o processo de resistência democrática ao arbítrio e à prepotência, que eram a regra daqueles tempos.

O senhor atuou em várias causas na Justiça Militar. Na sua opinião, a cassação da patente deve ser interpretada como consequência natural da condenação criminal ou como um julgamento autônomo com critérios próprios?

Entendo que se trata de uma consequência da condenação criminal, mas submetida às regras da legislação penal militar.

Como equilibrar liberdade de expressão com o combate a notícias falsas e discursos de ódio, sem destruir garantias fundamentais?

Este é o desafio que esperamos seja enfrentado pelo Poder Judiciário. Daí porque é necessário que a Justiça tire a venda e defenda a liberdade de dizer, sabendo identificar o que são ofensas.

Quais são, hoje, os maiores riscos ao Estado Democrático de Direito no Brasil?

Creio que o exercício da democracia está diretamente ligado ao fortalecimento das bases do Estado de Direito. Quer dizer, um Poder Legislativo sério e confiável. É necessário melhorar a representação parlamentar e essa responsabilidade recai em grande parte nos partidos políticos que não amadurecem... De igual modo, o Poder Judiciário tem de merecer a confiança da nação e, para tanto, tem de fazer jus a isso! Não temos tido bons exemplos ultimamente. Por fim, o Poder Executivo deve, da mesma forma, merecer a confiança do povo. Infelizmente, nem sempre vimos isso. Em resumo, o Estado Democrático de Direito tem a ver com a seriedade e a confiança nos poderes constituídos! A política está na base disso tudo...

O que a nova geração de juristas precisa compreender sobre o momento político atual para evitar retrocessos?

A nova geração de juristas deve ter uma formação democrática sólida. Acreditar nas instituições do Estado, praticar a democracia e ter absoluta crença na liberdade. Melhorar o ensino do direito faria muito bem a tudo isso que falamos até agora.

A legislação penal brasileira oferece instrumentos suficientes para combater facções, milícias e redes criminosas complexas?

Sem dúvida nenhuma. A crença fascista de aumentar a repressão, tornar as penas mais rigorosas e o encarceramento desenfreado e sem critérios justos é uma prática burra que não resolve nada. A experiência praticada pelo prefeito Rodrigo Neves, da cidade de Niterói (RJ), é revolucionária. Há presença efetiva do Poder Público nas diversas localidades. Merece a atenção do país pois se trata de um exemplo magnífico que está dando certo e merece ser copiado.

Em que pontos o processo penal brasileiro dificulta — ou facilita — investigações sobre organizações criminosas?

Esse tema tem a ver com muitas práticas que a administração pública deve aplicar e não raro se vale do jogo de empurra sem assumir as responsabilidades que dão trabalho, mas podem dar resultados formidáveis. Repito aqui: a experiência da administração municipal de Niterói nesse campo é um exemplo digno de registro e exemplo.

Como equilibrar operações policiais com a proteção dos direitos fundamentais da população?

As operações devem ser praticadas se ao mesmo tempo houver investimentos sociais na proteção e desenvolvimento da juventude. Não basta reprimir se não houver uma estratégia de educação e cultura para essa população jovem que está mais vulnerável a esses males.

Que reformas são indispensáveis para reduzir a influência de organizações criminosas no sistema prisional?

Pode parecer óbvio, mas a ausência absoluta de investimentos noutras áreas humanas e educacionais é o caldo de cultura dessa realidade alarmante que representa o sistema carcerário.

O Rio ainda pode recuperar territórios dominados por grupos criminosos?

Tenho certeza absoluta que sim. Mas é necessário investir além de armar e reprimir.

O senhor é otimista ou pessimista quanto à possibilidade de reverter o poder do crime organizado no estado?

Pergunta que merece outra pergunta: quem estará no poder para o exercício desse sentimento? Do jeito que as coisas estão em alguns estados, o otimismo é um sonho muito distante...

Em 60 anos de advocacia, poderia citar um episódio que marcou sua carreira?

Além do exercício da defesa dos perseguidos de toda sorte, ainda me emociono quando lembro que presidi o Conselho Federal de Entorpecentes nos idos de 1985, no Ministério da Justiça da Nova República e retiramos a criminalização da ayahuasca, vegetal de uso ritual, consumido como um chá, oriundo dos Andes (Santo Daime). Nesses 40 anos, não há caso de abuso, tráfico ou qualquer outro registro policial. Eis a prova de que a proibição é que estimula o mau uso.

Também me emociona a construção da Defensoria Pública criada por Emenda Constitucional no Estado do Rio de Janeiro, em 1987, antes da Constituição Cidadã, quando fui o primeiro procurador-geral dessa Instituição magnífica produzida pelo Estado de Direito e pioneira no Brasil. Período em que acumulei com a função de secretário de Justiça do Estado do RJ.

O STF declarou a tese da "legítima defesa da honra" inconstitucional, pois viola os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. O senhor concorda com esse posicionamento?

Decisão política que não faz justiça ao Supremo, pois se trata da politização do exercício livre da defesa em sede do Tribunal do Júri, que é a justiça praticada pelo cidadão. Mas o assunto é polêmico e foi politizado ao extremo.

Tendo participado da defesa de Doca Street, assassino de Angela Diniz, acredita que indiretamente, mesmo sem citar a honra, criminalistas ainda defendem feminicidas com base na vida pregressa da vítima?

Não sei. Analisar a defesa sem o caso concreto é um exercício de adivinhação impossível de ser feito.

A partir daquele episódio, o debate sobre violência contra a mulher ganhou nova dimensão no Brasil?

É possível, não sei dizer. Trata-se de matéria que emociona os debates a seu respeito.

O senhor acredita que o caso contribuiu para mudanças legislativas ou para a evolução do pensamento jurídico sobre gênero?

Não disponho dos dados sobre o resultado dessa discussão. Todo debate sobre assuntos polêmicos gera resultados para um lado ou outro da discussão. Sou apenas um advogado criminal, nascido e criado na defesa da liberdade.

A defesa criminal, muitas vezes, é mal compreendida pela sociedade. Como o senhor lidou com críticas ou interpretações equivocadas sobre seu papel como advogado?

O juiz que me julga — e com o maior rigor — é a minha consciência. Ela nunca fez 'interpretação equivocada' de minha atuação como advogado. Ao contrário, ela sempre me aplaudiu.

O caso marcou sua trajetória profissional. Qual reflexão pessoal mais profunda ele deixou?

Pergunta que vale uma enciclopédia. Foram incontáveis experiências de vida, somadas em 61 anos de vida forense. Talvez a que mais tenha mobilizado a minha emoção foi a defesa que fiz de um cliente ao ouvir o representante do Ministério Público pedir a pena de morte. Eu tinha menos de 30 anos e o cliente era pouco mais velho do que eu. Ganhamos a causa: ele foi condenado à prisão perpétua... No STM, a pena foi reduzida para 30 anos. Com a revogação da Lei de Segurança, foi feita a adaptação pela pena prevista no Código Penal comum, reduzindo-a ainda mais. Aplicou-se então a regra do livramento condicional e, poucos anos depois, ele ganhou a liberdade.

Se o caso fosse julgado hoje, com o arcabouço jurídico atual e com maior compreensão sobre violência de gênero, as teses de defesa deveriam ser diferentes?

Impossível dizer.

 

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postado em 04/12/2025 06:00
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