
Tomado por um infarto, em 1945, o poeta e romancista Mário de Andrade abrigava no coração e na alma a missão de protestar frente à ditadura do Estado Novo. Cento e 10 anos depois da incursão nas artes e letras, o escritor permanece atual. Pansexual declarado, admirador do Movimento Verde-Amarelo (criado, há um século, mas com vocação contrária à tirania, num grifo importante) e, em 1938, fundador da Sociedade de Etnografia e Folclore (em parceria com o antropólogo Lévi-Strauss), Mário de Andrade flana no enredo do mais recente filme de Murilo Salles, Mário de Andrade: O turista aprendiz.
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Outro dado imprime contemporaneidade ao documentário que enfoca (brevemente) a resistência à vacinação em massa. Encenado e de livre aderência (e recriação) à dita realidade, o longa registra a riqueza da oligarquia cafeeira (pré-crise de 1929), dedicada ao patrocínio das artes. O nacionalismo raiz de Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, entre outros, gozou da admiração de Mário, partidário da expansão do tupi. O autor da coletânea Pauliceia desvairada teve um capítulo de vida fundamental — registrado em anotações, dois anos antes da morte em 1945. Tratava-se dos apontamentos de viagem amazônica empreendida em 1927 (e sistematizada em livro póstumo, de 1976), portanto, anterior à publicação do clássico Macunaíma (1928). Fermentava, à época, a temática desenvolvida no romance. "Mário é o grande formulador do Brasil, em textos teóricos quando em sua literatura. Macunaíma é exemplar!", ressalta Murilo Salles, em entrevista ao Correio.
Mário de Andrade: O turista aprendiz não alivia, em alguns pontos (em registro indireto): o autor de Amar, verbo intransitivo renegava a mulatice das avós, convivia com a objetificação das mulheres e tinha, no espírito vaidoso, a meta de ser admirado. Ex-aluno do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (piano), Mário está nos cinemas, com lápis, papel e curiosidade na mochila. Íntimo de bebida alcoólica, o frequentador de saraus vai testar a hospitalidade das "tribos selvagens", topar com a beleza de borboletas gigantes, expurgar as "porcarias" de dentro de si, admirar o erotismo de vaqueiros e seringueiros e celebrar "a felicidade" que tem por chave movimentos repletos de lentidão, bem esparramados no Brasil de qualquer era.
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Entrevista // Murilo Salles, diretor de cinema
Houve benefícios com a convivência tão intrínseca da Amazônia com os estrangeiros?
A Amazônia sempre foi objetivo de cobiça, desde o surgimento do mito do El Dorado. E não só o ouro. Houve o famoso ciclo da borracha, quando a Ford criou o projeto Fordlândia no meio do Amazonas, e de cujo arquivo (no novo longa) utilizo algumas imagens. No início do século 20, vários países enviavam etnólogos para realizar pesquisas sobre as civilizações amazônicas, mas cujo objetivo maior era fazer um levantamento da fauna e flora, pesquisando plantas com capacidades curativas. E foi nesse escopo que o etnólogo Theodor Koch-Grümberg, que entre 1903 1913, fez duas viagens ao Brasil pesquisando os povos pemon, principalmente os Macuxi e os Taurepang onde recolheu o relato do Xamã Akuli sobre o mito do Makunaíma. É aí onde tudo começa.
Qual é a tua percepção quanto ao erotismo despertado no Mário de Andrade?
Mário sempre teve uma vida sexual muito privada, e complexa. O filme se detém bastante nessas contradições. Publicamente era um galanteador, mas no privado era mais complexo, o que causava um enorme desconforto sobre as indiretas que Oswald de Andrade espalhava sobre seu anterior grande parceiro na Semana de Arte Moderna. A ponto de Mário publicar um poema Eu sou trezentos..., em 1929, onde diz que as sensações renascem, e que sempre que um Deus morre ele manda buscar outro no Piauí. E depois escreve uma carta para Manuel Bandeira, EU sou 350, e pede que seu conteúdo só seja revelado 50 anos após sua morte. Depois da publicação dessa carta pela Folha, a revelação que iria se dar reserva-se a um incômodo que sente pelos amigos homens quando saem com ele. E sua personalidade platônica. Esse é Mário de Andrade.
A leitura das anotações de Mário afetou a tua visão de Brasil em que medida? Têm validade, hoje?
As anotações, os textos analíticos, os poemas, os romances, mas, principalmente as cartas de Mário de Andrade influenciaram toda a elite cultural brasileira nos anos 20/30/40 enquanto Mário viveu. Ele é o grande formulador do Brasil, em textos teóricos quando em sua literatura. Macunaíma é exemplar! Como está no filme, com a dose certa de ironia, quem inventou o Brasil foi Mário de Andrade. Mas é uma invenção paulista, pois é meio surpreendente para quem se entregou com tanto ânimo ao carnaval carioca, e as formas e expressões da cultura popular, do sul, norte e nordeste, tivesse alguma dúvida que qual brasileiro nos anos 1930 não soubesse o que era ser brasileiro. Em São Paulo, por muito tempo havia essa dúvida, que os angustiava profundamente.
Houve uma autocrítica com relação à percepção de "não negritude", anterior à ida para Amazônia? A europificação de Mário era uma coisa gritante nele?
Não, nunca houve. Esse é um dos 'problemas' que aponto no filme, pois Mário era um homem muito cultivado, apesar de nunca ter se formado. Falava francês fluentemente e era vaidoso dândi. Frequentava a alta elite cafeicultora de São Paulo, os barões do café, entre os quais estavam Paulo Prado e Dona Olivia Guedes Penteado, que, além de patrocinar a Semana de Arte Moderna, organizou a expedição Amazônica (objeto do filme).
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Como definiu tua plataforma técnica para a execução do filme?
Tudo partiu de um conceito: o filme se passa na cabeça do Mário de Andrade. Como ele diz no prefácio do Turista aprendiz, ele viajou (em 1927) sem nenhuma intenção de escrever. Apenas fez algumas anotações em pedaços de papéis. Quando voltou, publicou o Clã do jabuti e Macunaíma (em 1928). Mário escreveu O Turista aprendiz apenas em 1943, quer dizer 16 anos depois de ter viajado. Onde se conclui, pelo tempo, que os relatos em sua maioria são imaginações. Daí a ideia de filmar essas "lembranças" dentro da cabeça dele. Por isso, optamos por filmar tudo num estúdio. E as decisões artísticas evoluem do conceito: precisamos de um fundo verde croma para inserir as imagens depois de filmadas, daí também o rigor dos enquadramentos, que iriam ter que receber outras imagens e cenários virtuais filmado a posteriori.
Como valorizou a música?
A trilha sonora se baseia na pesquisa feita pelo diretor musical Ricardo Góes. Examinou-se partituras que Mário de Andrade usava para dar suas aulas de piano. Todo o escopo criativo emerge daquilo que Mário nos fornece, inclusive a cena que cantam Avanti, que, assim está no livro, talvez uma homenagem ao companheiro modernista Plínio Salgado.
Como percebe a inflexão modernista, nos dias de hoje? Que elemento embutido na cultura do país é irrevogável — despontou uma assimilação completa?
O Brasil ganhou prumo e cresceu muito nessa primeira metade do século 20, impulsionado por todos esses seus intérpretes. Poucos países têm uma farta produção especulativa sobre suas raízes tal como o Brasil. E alguns livros foram escritos, para dar conta de tanta teoria desencontrada. Mas o que interessa é que o Brasil sempre foi muito singular, exatamente pela sua composição antropológica, pelas contribuições culturais das três raças que nos compõem como nação.
Você se sente um cineasta compreendido? Com que parceiros de tela comunga ou se identifica? O público amplo retém suas propostas?
Eu me sinto um cineasta múltiplo. Meu estilo é não ter estilo, procuro fazer, de cada filme, um. Procuro o Brasil dentro de cada filme que fiz, e por exemplo, me orgulho de ter tantos prêmios Candango, tantos Kikitos. Sou um cineasta "brasileiro". Claro que quando faço a passagem de fotógrafo para diretor, andei circulando e ganhei prêmios em âmbito internacional. Mas depois de um tempo, percebi que os cineastas brasileiros, pós-Cinema Novo, que mais admiro, não são os que circulam tanto em festivais internacionais. São, na verdade, cineastas movidos pelas questões que nos impulsionam a fazer filmes, pelas questões formadoras do nosso ideário de país. São assim Júlio Bressane, Ana Carolina, Carlos Alberto Prates Correia, Eduardo Escorel, Arnaldo Jabor, Rogério Sganzerla e Carlão Reichenbach, todos de gerações anteriores, enfim, cineastas com quem, alguns, trabalhei e outros que admiro muito (e são muitos mais do que citei) por suas preocupações em produzir uma estética própria, nascida desse turbilhão fervente da cultura brasileira. Por isso, sim, me considero um cineasta muito bem sucedido. O público amplo sequer assiste filmes desses e de muitos outros cineastas maravilhosos que temos, e isso vem demostrar o nível da incompetência de nossa administração cultural.