HOMENAGEM

Hermeto Pascoal: gênio inclassificável e educador involuntário

O gênio que ensinava sem dar aula, criou um universo musical próprio e mostrou que é possível formar artistas fora dos moldes tradicionais

A genialidade de Hermeto Pascoal: a música como método de ensino e a democratização da arte -  (crédito:  Pedro Dimitrow/Divulgação)
A genialidade de Hermeto Pascoal: a música como método de ensino e a democratização da arte - (crédito: Pedro Dimitrow/Divulgação)

No sábado (13/9), o Brasil perdeu uma de suas figuras mais geniais e inclassificáveis: Hermeto Pascoal. Multi-instrumentista, compositor, improvisador e inventor de sons, ele não apenas revolucionou a música brasileira — ele criou um universo próprio. Mas, como destaca o professor e cantor Moisés dos Santos, sua contribuição vai além da arte: Hermeto foi também um educador revolucionário, mesmo sem jamais se reconhecer como tal.

Formado em música pela Universidade de Brasília, mestre em práticas de ensino informais na área e coordenador de música popular da Escola de Música de Brasília, Moisés traz uma análise profunda sobre o legado do "bruxo". Ele ressalta que, mesmo sem formação acadêmica, Hermeto criou um sistema efetivo de ensino musical, informal, orgânico e extremamente transformador. “Tudo era uma coisa só, sem hierarquização. Técnica, teoria, estética, composição, tudo acontecia ao mesmo tempo”, diz Moisés.

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O epicentro desse processo foi a chamada Escola Jabour, um espaço que Hermeto criou em sua casa no bairro de mesmo nome, no Rio de Janeiro. De 1978 a 1993, de segunda a sexta, das 14h às 19h, o local funcionou como um verdadeiro laboratório de invenção musical. Lá, os músicos não apenas ensaiavam; eles viviam a música. Estudavam técnicas instrumentais, aprendiam teoria pela prática, compunham coletivamente e absorviam os princípios estéticos do mestre. Tudo de forma totalmente imersiva, quase ritualística.

Não havia currículo, provas ou metodologias padronizadas. O aprendizado ocorria na convivência, na escuta, na repetição e no fazer. Hermeto identificava as lacunas dos músicos e criava exercícios específicos para desenvolver suas habilidades. Cada atividade musical proposta era, ao mesmo tempo, uma aula prática de harmonia, ritmo, timbre e forma. Ele ensinava com a música acontecendo, e isso, segundo Moisés, é o que o torna uma figura fundamental para pensar novas pedagogias musicais no Brasil.

"Mesmo não de maneira proposital, ele criou um sistema efetivo de ensino. E isso foi fenomenal para a educação", afirma Moisés. Para ele, Hermeto mostrou que é possível formar artistas fora da estrutura institucional, por meio da convivência criativa, da escuta atenta e da experimentação constante. Num país onde o acesso à formação formal ainda é desigual, a prática de Hermeto aponta caminhos possíveis, alternativos e profundamente democráticos para o ensino da arte.

O artista que transcendia tudo

Hermeto Pascoal não se enquadrava em gêneros, estilos ou escolas musicais. Ele reconfigurou os próprios parâmetros da música — melodia, ritmo, harmonia, timbre e principalmente a instrumentação. Enquanto músicos da chamada música de concerto já começavam a experimentar objetos sonoros, Hermeto fazia isso intuitivamente, descobrindo musicalidade em motores de dentista, ruídos corporais involuntários, água, vento e qualquer fonte sonora possível.

“Ele utilizava muito dessa transcendência. A música dele exige um alto grau de complexidade para ser compreendida, tanto pelos ouvintes quanto pelos músicos que tocavam com ele”, explica Moisés. “Era preciso muito conhecimento técnico para acompanhar.”

Mais do que um compositor, Hermeto era um inventor de música. Ao tocar a sanfona, por exemplo, ele não se limitava às teclas. Produzia sons percussivos arranhando partes do instrumento. O que era convencional, ele usava de forma não convencional — e o que era não convencional, ele tratava com naturalidade. O resultado era uma música que “parecia loucura”, como diz Moisés, mas carregava um método próprio.

Apesar de fazer música considerada "incomercial", Hermeto construiu uma carreira internacional sólida, respeitado em todo o mundo. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa por três instituições, incluindo a prestigiosa Juilliard School, em Nova York, um reconhecimento raríssimo para um artista brasileiro fora do mainstream.

Ele se destacou num momento em que a indústria da música brasileira era voltada para as massas. Enquanto todos buscavam se encaixar em padrões de mercado, Hermeto seguia o caminho oposto. “Ele não seguia nenhum padrão. Era completamente dele”, ressalta Moisés.

Educador por essência, não por diploma

A formação de Hermeto era empírica. Não havia método escrito, apostila ou conservatório. Mas ele formou músicos. Formou pessoas. “Mesmo não de maneira proposital, ele criou um sistema de ensino. E isso foi fenomenal para a educação”, afirma o professor. 

O processo criativo de Hermeto também subvertia a lógica comum: ele criava primeiro, escrevia depois. Como se gravasse um filme antes de escrever o roteiro. Essa liberdade fez com que sua obra se tornasse atemporal e sempre atual. Ao contrário de artistas como Tom Jobim — que representam uma estética e um tempo — Hermeto representa um universo à parte, como define Moisés: “Ele é um universo paralelo”.

Albino, nordestino, autodidata. Hermeto rompeu barreiras de estética, gênero musical e também sociais. Construiu uma trajetória longeva sem concessões, sendo fiel à sua essência criativa. Sua vida, sua música e seu processo de ensino são testemunhos de que é possível existir artisticamente fora dos moldes e mesmo assim marcar gerações.

Como resume Moisés dos Santos: “A nossa luta é sermos nós dentro dos espaços que ocupamos.” Hermeto foi exatamente isso: inteiro, criativo e sem medo de explorar as possibilidades de ser quem ele foi.

 

postado em 15/09/2025 15:34
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