
Mulher, viúva, de fora do eixo Rio-São Paulo, doceira, de pouca escolaridade. Parece difícil entender como uma escritora como Cora Coralina, pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (1889-1985), se tornou uma das mais conhecidas poetas da literatura nacional.
Pois a autora goiana, cuja morte faz 40 anos nesta quinta-feira (10/07), rompeu bolhas com sua escrita simples — por vezes considerada simplória — e, reconhecida na velhice, passou a ser nome presente em livros escolares e ter algumas frases bonitas de sua lavra estampada em diversos espaços, inclusive nas redes sociais.
"A literatura de Cora Coralina ocupa um lugar singular na produção brasileira por conjugar um percurso marginal ao sistema literário com uma estética ancorada na oralidade, na memória e no cotidiano do interior do país", diz à BBC News Brasil o poeta Carlos Willian Leite, presidente do Conselho Estadual de Cultura de Goiás e editor da Revista Bula.
Leite ressalta que a autora construiu sua obra a partir de uma "vivência distante dos grandes centros culturais, produzindo textos que traduzem, com linguagem acessível e sensível, o universo simbólico do Brasil interiorano".
O sociólogo Clovis Britto, professor na Universidade de Brasília (UnB) e estudioso da obra de Cora Coralina, classifica a literatura da goiana como "de resistência".
"Ela poetizou a 'vida mera das obscuras', que era o modo como designava a vida das pessoas marginalizadas na sociedade", diz ele.
Essa visão também é compartilhada pelo linguista Vicente de Paula da Silva Martins, professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), no Ceará.
Para ele, ao dar voz às camadas sociais menos visíveis, especialmente na Cidade de Goiás (ou Goiás Velho), sua terra natal, Cora Coralina "desafiou e expandiu as fronteiras da literatura tradicional".
"É uma escrita carregada de memórias, sentimentos e uma forte conexão com a natureza", avalia Martins.
"Sua obra é marcada pela busca por autenticidade e pela valorização do patrimônio cultural, ao resgatar a memória histórica e os elementos da cultura popular de Goiás", continua ele.
Isso a posiciona, segundo Martins, como uma das pioneiras na literatura que dialoga com as temáticas da periferia e das camadas sociais marginalizadas.

A estreia tardia
Em 1965, quando Cora Coralina tinha de 75 para 76 anos, foi publicado seu primeiro livro: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais.
A ausência de vínculos institucionais e a condição periférica retardaram seu ingresso no circuito editorial, explica o poeta Carlos Willian Leite.
"Além disso, sua identidade como mulher e escritora fora dos cânones urbanos contribuiu para a invisibilidade de sua produção durante grande parte da vida."
"Sua estreia literária, portanto, não representa apenas uma realização pessoal tardia, mas o sintoma de um campo que impõe barreiras significativas à diversidade de vozes", completa Leite.
A obra de estreia não teve grande repercussão até que no fim dos anos 1970 um exemplar caiu nas mãos do já consagrado poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Ele se encantou. Escreveu uma simpática e elogiosa carta para a autora e, em 27 de dezembro de 1980, publicou um artigo sobre ela no Jornal do Brasil.
No texto, Drummond não poupou adjetivos. Classificou a poeta como "mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais". Disse ainda que "se há livros comovedores, este é um deles".

O sociólogo Clóvis Britto conta que a obra chegou a Drummond porque a segunda edição, de 1978, acabou sendo encaminhada pela editora — a então gráfica da Universidade Federal de Goiás (UFG) — para diferentes críticos e escritores do país, gerando grande repercussão.
Para Britto, foi "inegável o impacto das cartas e da crônica elaboradas por Drummond para furar a bolha do sistema editorial brasileiro".
"Esses fatores, somados às estratégias poéticas e políticas da autora, contribuíram para que sua obra alcançasse uma grande visibilidade", analisa.
Doces + livros
Nascida na Cidade de Goiás, Anna Lins escrevia desde adolescente, publicando em jornais provincianos de sua região. Cursou apenas o ensino primário e frequentava tertúlias literárias no antigo Clube Literário Goiano.
Em 1911, casou-se e se mudou para o interior paulista. Seu marido era chefe de Polícia — algo equivalente ao Secretário de Segurança Pública — do governo de São Paulo. Morou primeiro em Jaboticabal, depois na capital. Ficou viúva jovem, com menos de 40 anos.
A goiana resolveu, então, voltar ao interior do Estado: viveu em Penápolis e Andradina. Para sustentar os filhos — teve seis, mas dois morreram logo após o nascimento — começou a fazer linguiças para vender.
Também se tornou livreira, comercializando os livros da editora José Olympio, e frequente colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo e de jornais pequenos do interior paulista.
Britto explica que Cora sempre produziu literatura, desde a adolescência em Goiás e, depois, na fase adulta no interior paulista. Mesmo sem oportunidade de publicar um livro, tinha seus textos publicados em jornais.
"Assim, sempre esteve inserida no campo literário, acompanhando as transformações estéticas e mantendo relações com escritores, jornalistas, críticos e editores", diz o sociólogo.
"Apesar disso, sua condição de uma mulher, viúva, idosa, pobre, no interior brasileiro, impôs dificuldades para seu sustento financeiro que contribuíram para que adiasse sua estreia em livros", completa.
Cora decidiu voltar à terra natal, Goiás, em 1956. Ali se estabeleceu como doceira e passou a se dedicar mais à escrita.
A primeira edição de seu livro inaugural, Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, saiu em 1965. Em 1976, publicou Meu Livro de Cordel. Em 1983, Vintém de Cobre — Meias Confissões de Aninha, que também rendeu elogios de Drummond. Ainda em vida, ela veria lançado seu livro de contos Estórias da Casa Velha da Ponte.
"Depois que retornou para sua cidade natal, ela dedicou seu tempo para a doceria e para a literatura, sendo que a profissão de doceira era a que garantia sua renda", explica Britto.
Cora recebia em sua casa seus clientes para vender doces, enquanto conversava sobre literatura e declamava seus versos.
Depois, quando publicou seu primeiro livro, passou a vender sua obra em casa e em feiras populares de Goiânia.
"A inserção de Cora Coralina no cenário nacional ocorreu fora dos canais tradicionais de legitimação literária", diz Leite.
Postumamente, também foram publicados os livros de poemas Tesouro da Casa Velha e Vila Boa de Goiás, além dos infantis Meninos Verdes, A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu e O Prato Azul-Pombinho.
"Ela poetizou o cotidiano do interior brasileiro, acompanhando quase um século de transformações", avalia Britto.
Literatura menor?
Mas se Cora Coralina foi alçada ao panteão da literatura nacional por sua popularidade, está longe de ser unanimidade entre os críticos, escritores e acadêmicos.
A reportagem conversou com cinco especialistas críticos à obra da goiana — quatro disseram que nem queriam comentar a obra de Cora Coralina, por julgarem-na "irrelevante" ou mesmo "fraca, ruim" enquanto literatura.
Um deles chegou a afirmar que "dizem que nem boa doceira ela era".
Laureado com dois prêmios Jabuti, o poeta e professor de literatura Frederico Barbosa afirmou à BBC News Brasil que "o que Cora Coralina escreveu não corresponde àquilo que eu considero poesia".
"Eu diria que são lugares-comuns alinhavados com uma certa graça. E que só se tornaram populares e conhecidos por causa da peculiaridade de terem sido escritos por uma senhora doceira de quase 80 anos", ressalta, definindo a produção da goiana como "verborragia vazia de experimentação linguística".
"Muita gente tem medo de externar sua opinião sobre a não poesia ou a fraca poesia de Cora Coralina porque podem acusar essa pessoa de não gostar de uma velhinha, de jogar a velhinha debaixo do bonde", comenta Barbosa.
"Mas não se trata de nada pessoal, e sim de uma avaliação literária. A pessoa de Cora Coralina parece ter sido uma pessoa muito interessante. Sua poesia, não."
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