
Uma multidão acompanhou, ontem, pelas ruas de Montevidéu, o cortejo que levou o caixão de José “Pepe” Mujica, o ex-guerrilheiro que chegou à Presidência do país, ao Palácio Legislativo, onde está sendo velado até a tarde de hoje. Entre lágrimas, gritos de incentivo e agradecimentos, os uruguaios emocionados se posicionaram dos dois lados da Avenida 18 de Julho, a principal da capital, para se despedir do ex-agricultor, que se tornou um ícone da esquerda latino-americana.
Mujica morreu anteontem, a uma semana de completar 90 anos, em decorrência de um câncer no esôfago. Adepto de um estilo de vida austero, fiel à sua retórica anticonsumista, ele realizou o desejo de morrer em sua modesta casa de chácara nos arredores de Montevidéu, acompanhado da esposa e ex-vice-presidente uruguaia, Lucía Topolansky.
Afilhado político de Mujica, o presidente uruguaio, Yamandú Orsi, liderou o cortejo fúnebre ao lado de Topolansky, partindo da sede da Presidência. Três horas depois, chegaram ao Palácio Legislativo. Durante todo o trajeto, os uruguaios se aglomeraram para ver a passagem do caixão disposto sobre uma carreta fúnebre, puxada por cavalos. “Obrigado, Pepe!”, gritavam alguns dos presentes, enquanto outros choravam.
Bandeiras uruguaias e da esquerda local tremulavam nas ruas de Montevidéu. “Pepe Mujica representa a luta, a resiliência, o seguir adiante para ajudar os mais necessitados”, disse a médica Solana Lozano, de 46 anos, à agência France Presse (AFP). Ao som de A don José, clássico da música folclórica uruguaia identificada com a esquerda, a passagem da carreta fúnebre arrancou aplausos e gritos. Militantes lembravam o legado de “Pepe”, seu lugar de referência para a esquerda e sua luta pelos mais necessitados.
“Foi um homem que dedicou sua vida à causa dos pobres. Como dizia Eduardo Galeano, pôs o norte aqui no sul. Nos mostrou para o mundo, e este país pequenino foi mais uma vez visto e reconhecido”, refletiu o professor Mauro de los Reyes, 50 anos, referindo-se ao escritor uruguaio falecido em 2015. Desde cedo, ele se posicionou, ao lado de dezenas de ativistas, às portas da sede da governista Frente Ampla.
Lula
Filas imensas foram formadas para o velório público, no início da tarde, no Salão dos Passos Perdidos do Parlamento. Segundo a imprensa uruguaia, o cronograma da cerimônia de despedida sofreu uma alteração, permitindo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva possa desembarcar em Montevidéu e prestar suas homenagens ao amigo de duas décadas. Com isso, o velório, que se encerraria às 15h, foi estendido por duas horas.
“Conheço muita gente, muitos presidentes, muitos políticos, mas nenhum deles se iguala à grandeza da alma de Pepe Mujica. Ele era uma figura excepcional”, comentou Lula, antes de encerrar uma viagem a Pequim.
Durante seu mandato presidencial (2010–2015), o ex-guerrilheiro se caracterizou por romper com o padrão de seus antecessores. Ao discurso direto, sem protocolos, ele somou reformas e decisões que marcaram o país de 3,4 milhões de habitantes.
A partida do “presidente mais pobre do mundo”, como Mujica era chamado, desencadeou uma onda de mensagens de líderes latino-americanos e figuras da esquerda internacional. Ao fim do velório público, haverá uma cerimônia de despedida que deve reunir autoridades estrangeiras. Em seguida, o corpo do ex-presidente uruguaio será cremado. A seu pedido, as cinzas serão enterradas no jardim da chácara onde morava, ao lado de Manuela, sua cadelinha de três patas que o acompanhou por mais de duas décadas.
Da guerrilha à democracia
Sentada próximo ao caixão, no Salão dos Passos Perdidos do Parlamento, a viúva de Mujica recebeu o apoio de várias pessoas que compareceram ao velório. Horas antes, Lucía Topolansky foi aplaudida na saída do cortejo fúnebre, confortada pela primeira-dama Laura Alonsoperezao, que acompanhava o marido, o presidente uruguaio Yamandú Orsi.
José Mujica e Lucía Topolansky se apaixonaram na guerrilha, cultivaram o amor na democracia e romperam os padrões ao governarem o Uruguai. Como o marido, Lucía, 80 anos, é uma ex-guerrilheira do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T), com uma vida de luta e militância de mais de cinco décadas.
Lucía conheceu Mujica na clandestinidade. A prisão os separou, e a relação foi retomada depois. Enquanto protagonizava a ascensão da esquerda ao poder no Uruguai, um país dominado pela centro-direita até 2005, o casal consolidou sua relação nos arredores de Montevidéu. Entre “mates”, o cultivo de flores e o cuidado com seus cães, uma chácara em Rincón del Cerro se tornou o refúgio ideal.
“Ela está bem, com uma força tremenda”, descreveu o cantor e compositor uruguaio Mario Carrero, amigo do casal.