Na décima primeira semana de exibição no Brasil, Ainda estou aqui está em cartaz em 500 salas e foi visto por quase 3,5 milhões de espectadores. Trata-se de um raro caso recente de sucesso de crítica e de público. O filme de Walter Salles inicia a carreira comercial no exterior também com números impressionantes. Ocupa, desde a última quarta-feira, 180 cinemas da França. Nos Estados Unidos, o feito é igualmente superlativo. Depois de estrear ontem em Nova York e Los Angeles, o longa-metragem deve ser exibido em mais de 400 cinemas até o início de fevereiro — circuito que pode ser ampliado em caso de indicações ao Oscar. Mas, e se o filme ficar de fora da disputa da estatueta que representa o prêmio máximo da indústria, será uma derrota para o cinema nacional? De forma alguma.
O êxito que a obra estrelada por Fernanda Torres tem obtido traz ganhos diretos e indiretos. Um deles é o de reacender o interesse pela produção audiovisual brasileira. Vale lembrar que o cinema nacional já obteve premiações expressivas, como a Palma de Ouro do Festival de Cannes atribuída em 1962 a O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, e o Leão de Ouro do Festival de Veneza, em 1981, para Eles não usam black-tie, de Leon Hirszman. O próprio Walter Salles recebeu o Urso de Ouro em Berlim em 1998 por Central do Brasil, filme com Fernanda Montenegro que também ganhou o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, em 1999, Mais recentemente, o longa-metragem Bacurau, do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, foi agraciado com o Prêmio do Júri em Cannes. A atriz mineira Yara de Novaes, desde o ano passado, tem colecionado premiações pelo impressionante desempenho no papel-título do drama Malu, de Pedro Freire. Sem contar os prêmios atribuídos a Cidade de Deus, do paulista Fernando Meirelles, a presença constante de títulos do diretor cearense Karim Aïnouz na competição dos festivais de maior repercussão...Talentos nacionais com reconhecimento internacional.
Agora é a vez de Walter Salles, mais de duas décadas após Central do Brasil, voltar a colecionar elogios da crítica especializada. Nos últimos dias, periódicos internacionais têm enaltecido, quase que de forma unânime, o longa-metragem baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva. Na edição de ontem, o The New York Times classificou o filme como "bonito e devastador", destacando a "realização primorosa e o grande apuro visual", além de afirmar que o longa faz um "retrato comovente de como a política desestabiliza e remodela a esfera doméstica, e como a solidariedade, a comunidade e o amor são o único caminho viável para viver em meio a tragédia."
Tantos elogios e as cada vez mais prováveis indicações ao Oscar não podem ofuscar a conquista maior de Ainda estou aqui. E foi obtida em território nacional. Apresentou a milhões de brasileiros, sem pieguismo ou didatismo, as violentas consequências do abuso de poder que marca um regime ditatorial. Por meio da recriação da história de uma família que sequer teve o direito de velar a morte de seu patriarca, o diretor e sua equipe mostraram, especialmente para as gerações que nasceram depois de 1985, a face mais sombria, e cruel, da ditadura militar. E lançaram um alerta para que outros cidadãos não sejam 'desaparecidos' pelos que defendem a arbitrariedade acobertada pelo Estado. Por isso, o título do livro e do filme não é apenas uma referência a Eunice Paiva, mas um alerta. Os algozes de Rubens Paiva ainda estão por aqui.