
JORGE DUARTE, presidente da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)
Mesmo em um país acostumado a escândalos com recursos públicos, o caso recente do INSS impressiona pela quantidade de pessoas afetadas, pelo volume financeiro envolvido e pela facilidade com que poderia ter sido evitado. Bastariam mecanismos básicos de controle, transparência ativa e respeito ao interesse público. O cidadão deveria saber, por óbvio, em qualquer situação e não apenas nesta, que haveria desconto, por quê, para quem, e ter como impedir com facilidade.
Esse episódio escancara uma falha estrutural: a comunicação. O Estado segue incapaz de estabelecer relações confiáveis com a população. Onde há vácuo de informação oficial, instala-se a desinformação, mina-se a confiança e florescem oportunismos. Não é só má-fé de terceiros: há omissão do Estado. Falhou a prestação do serviço, falhou a comunicação pública.
Situação parecida ocorreu com a proposta de fiscalização do Pix. Mal comunicada, foi retirada após forte reação pública. A medida em si parecia ser justificável, não era inviável, mas caiu por ausência de planejamento comunicacional. Faltaram diagnóstico, escuta e estratégia. Governos são bons em divulgar feitos, mas resistem a pensar a comunicação como parte da política — voltada ao serviço, não apenas à promoção, e presente desde sua concepção, não só como etapa final.
Comunicação pública implica compromisso de colocar o cidadão no centro: significa ouvir com atenção, garantir o direito à informação verdadeira, acessível e compreensível, e criar caminhos efetivos de participação. É comunicação voltada ao interesse coletivo, que aproxima Estado e sociedade e fortalece a cidadania. É erro grave tratá-la como algo secundário. Um gestor público que ignora a comunicação com os públicos afetados não compreende a responsabilidade de seu papel. Quando milhares de aposentados descobrem pela TV que tiveram descontos indevidos durante meses, o que se vê é um Estado omisso, que transferiu ao cidadão a obrigação de descobrir o que lhe acontece.
E o Estado ainda vê o cidadão como entidade abstrata e homogênea. Falta reconhecer que decisões públicas afetam pessoas reais, muitas com baixa escolaridade, dificuldades digitais, pouca familiaridade com processos administrativos. Políticas públicas eficazes exigem, desde a origem, um planejamento comunicacional que leve em conta as condições reais da população. É preciso fazer perguntas fundamentais: os públicos afetados foram ouvidos? Como garantir compreensão por parte de quem mais precisa? A informação será clara, acessível e oportuna durante todo o processo? Como garantir que a política chegue a quem realmente precisa dela? Sem diagnóstico, estratégia e planejamento, a comunicação tende a ser tardia e cosmética —quando já deveria ter sido estruturante.
A comunicação institucional funciona, quando funciona, para promoção e publicidade. Mas falha no essencial: ouvir, orientar, dialogar. No caso do INSS, mais de 97% dos aposentados e pensionistas, segundo levantamento da CGU, disseram não reconhecer ou não ter autorizado os descontos. Isso revela não só um golpe, mas a falência do Estado em informar e proteger.
As instituições não podem esperar que cidadãos vulneráveis, com baixa capacidade digital, enfrentem sozinhos um ambiente de desinformação. Estamos soterrados por propaganda, mas seguimos sem orientação clara sobre temas que afetam diretamente a vida das pessoas. Saber como agir, cobrar, acessar direitos, reagir a abusos — isso ainda é um privilégio, quando deveria ser um direito.
Comunicar só depois que o problema estoura é um erro grave. A comunicação deve nascer junto com a política pública, não depois dela. A crise do INSS revela um problema estrutural que vai além de um órgão ou de um governo: está espalhado pelos Três Poderes, em todas as esferas e regiões do país.
Pesquisas recentes da ABCPública mostram que, embora valorizada no discurso, a comunicação estratégica — aquela que ajuda o cidadão a entender seus direitos, orienta sobre serviços públicos e conecta a sociedade ao Estado — ainda é periférica. Muitas vezes, é tratada apenas como divulgação de ações prontas, e não como parte da solução. Se a comunicação estivesse no centro da política de descontos do INSS, a fraude não duraria um mês. O aposentado seria avisado claramente, saberia o motivo do desconto, teria um canal acessível para tirar dúvidas e facilidade para cancelar. A comunicação pública não é detalhe: é serviço essencial, é direito do cidadão e é dever do Estado.
A operação da Polícia Federal, exemplar, deveria ter sido rapidamente acompanhada por uma ação coordenada de comunicação pública explicando o ocorrido, seus efeitos e os caminhos disponíveis para os prejudicados. A imprensa tenta preencher o vazio. Mas sem ação oficial visível, consolida-se o abandono informativo. Abre-se espaço para a desinformação e o desgaste político, para a ampliação da falta de confiança do cidadão com relação ao Estado e ao governo.
A crise do INSS é, também, uma crise de comunicação pública — e um alerta concreto sobre o preço da omissão. Comunicação não é acessório: é pilar essencial para que o Estado cumpra sua função com dignidade, eficiência e transparência.