Opinião

Sobre o incômodo vínculo da mobilidade com o racismo

O transporte é uma tecnologia social que funciona como dispositivo de poder do racismo institucional. Mesmo que seu caráter racista não esteja explícito, ele é sentido pela população negra

"O financiamento da mobilidade também produz desigualdades raciais" - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Paíque Duques Santarém mestre em antropologia, doutor em arquitetura e urbanismo, milita no Movimento Passe Livre e integra o Observatório das Metrópoles

O debate sobre o transporte coletivo no Distrito Federal e Entorno está quente no primeiro semestre do ano. Olhemos quatro fenômenos: a implementação da tarifa zero aos domingos e feriados; a proposta de aumento das tarifas das linhas que ligam as cidades do Entorno ao DF; a privatização da rodoviária; e as recorrentes panes no sistema metroviário. Isso significa que a mobilidade urbana local está em processo de transformações relevante que traz reflexões sobre circulação, segregação e direito à cidade.

Em minha tese de doutorado Mobilidade racista, antirracista e negra: Transportes e relações raciais no Brasil (2024, PPGFAU-UnB), analiso como o nascimento do sistema de transportes brasileiro conserva relações com o sistema colonial escravista e seu desenvolvimento tem relações com o criminoso projeto eugenista, que vê no controle da circulação da população negra uma das ferramentas de purificação racial da sociedade.

Conceituo esse fenômeno como mobilidade racista, que se manifesta de várias formas. A segregação urbana tem caráter racial, prejudicando especialmente territórios de maioria populacional negra, com veículos de menor qualidade, menos linhas e horários. A forma de organização da mobilidade equipara usuários a cargas do transporte logístico, organizado para que o transporte seja mais lucrativo aos empresários quanto mais lotado, sucateado e caro for o serviço. Somam-se a isso as recorrentes situações de discriminação racial na mobilidade, que tornam o transporte um veículo cotidiano de promoção do racismo.

O financiamento da mobilidade também produz desigualdades raciais. As tarifas impactam mais a população negra, que tem menor renda, é minoria entre concursados ou celetistas — tendo menos acesso ao vale-transporte — e maioria entre informais e autônomos, que pagam passagem inteira. Além disso, a tributação no Brasil é regressiva: negros, que são maioria entre os mais pobres, pagam proporcionalmente mais impostos, enquanto os super-ricos, majoritariamente brancos, quase não contribuem. A maior parte dos recursos públicos é destinada ao transporte individual (obras como viadutos e duplicação de pistas), no qual a população negra é minoria.

Ou seja, o transporte é uma tecnologia social que funciona como dispositivo de poder do racismo institucional. Essa tecnologia é muito sofisticada e difusa: mesmo que seu caráter racista não esteja explícito, ele é sentido pela população negra. Além dele, porém, existem formas de resistência e produção dos próprios caminhos da população de cor, que são os fenômenos da mobilidade antirracista e a mobilidade negra. Esses conceitos explicam como afrodescendentes nunca foram passivos e conquistam direitos com suas próprias forças, combatendo os projetos de genocídio da população negra brasileira.

Voltando aos fatos iniciais, a lente racial ajuda na sua compreensão. O aumento de tarifas das passagens do Entorno tem um caráter racialmente violento. As cidades dos estados de Goiás e Minas Gerais, que compõem a nossa Região Metropolitana, são de maioria negra, seus veículos e preços são ainda piores que os do DF. Esse aumento amplia exploração, desemprego, evasão escolar e pobreza, fenômenos que impactam mais a população negra. A privatização da rodoviária ataca ambulantes e pequenos comerciantes, em processo de gentrificação do espaço para trocar trabalhadores/as negros/as autônomos por grandes empreendimentos de empresários brancos. A precarização do metrô visa privatizar sua operação, demitir concursados e aumentar lucros, beneficiando um grupo empresarial de perfil racial previsível.

Por outro lado, a política de Tarifa Zero é uma alternativa que tem caráter antirracista na mobilidade. Ela possibilita maior circulação livre da população negra, aumentando as possibilidades profissionais, educacionais e culturais. A proposta está nas ruas como pauta de organizações da mobilidade e antirracistas há muito tempo, desde quando o atual mandatário do GDF era contrário, segundo ele mesmo, "por questões ideológicas". Foi a luta dos movimentos sociais que modificou a postura dos governantes, mesmo que de forma ainda muito tímida e articulada a interesses de ampliação do lucro empresarial.

Com essa reflexão, quero apresentar a possibilidade das lentes antirracistas para análise da mobilidade urbana como uma ferramenta capaz de constituir mecanismos que melhorem o transporte para toda população. Constituindo uma sociedade sem catracas nem paus de arara, mas, sim, com muita liberdade.

 

Por Opinião
postado em 10/05/2025 06:00
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