ARTIGO

Exame toxicológico na primeira CNH: um equívoco evitado a tempo

O veto evita que um contingente ainda maior seja empurrado para dirigir sem CNH e barra a transferência de volumosos recursos da população para uns poucos laboratórios

"Se o exame toxicológico é uma ferramenta de saúde pública, por que seu custo seria arcado pelo próprio indivíduo, que deveria "provar" sua inocência antes mesmo de ter o direito de dirigir?" - (crédito: Maurenilson Freire)

DAVID DUARTE LIMA, doutor em segurança de trânsito

O Congresso Nacional aprovou uma lei que impunha aos candidatos à primeira Carteira Nacional de Habilitação (CNH) a obrigatoriedade de se submeterem a um exame toxicológico para detecção do uso de substâncias psicoativas. A medida, porém, foi vetada pelo presidente Lula — decisão acertada diante dos inúmeros problemas técnicos, sociais e econômicos associados à proposta.

Embora o combate às drogas no trânsito seja um objetivo legítimo e relevante, obrigar jovens e trabalhadores a realizarem um teste caro, ineficaz e descolado da realidade da condução representa mais um entrave ao direito à mobilidade e uma distorção da política de segurança viária. O veto presidencial impediu que essa medida se tornasse mais uma barreira de obtenção da CNH para milhões de brasileiros.

O primeiro ponto é o ônus transferido ao cidadão. Se o exame toxicológico é uma ferramenta de saúde pública, por que seu custo seria arcado pelo próprio indivíduo, que deveria "provar" sua inocência antes mesmo de ter o direito de dirigir? Essa inversão do ônus da prova contraria princípios básicos de justiça. Além disso, trata-se de um exame com baixa aplicabilidade prática: ele não mede se a pessoa está dirigindo sob efeito de drogas, apenas se consumiu alguma substância semanas ou meses antes — o que nada diz sobre sua conduta ao volante.

Na prática, a "janela de detecção" é limitada e o tempo entre coleta e resultado pode ser de semanas. O verdadeiro período sem fiscalização é muito maior, criando uma sensação ilusória de segurança. Se o objetivo é impedir a condução sob efeito de drogas, a forma adequada são os testes com drogômetros — que identificam o consumo recente e têm valor probatório real em situações de fiscalização.

Além disso, há um erro conceitual grave ao se instrumentalizar o processo de habilitação para implementar políticas de combate às drogas. A formação de condutores deve se concentrar em desenvolver competências técnicas, cognitivas e psicológicas para dirigir com segurança — e não em funcionar como filtro moral ou sanitário. Ao ampliar a burocracia da habilitação, a proposta desestimula exatamente os públicos que mais precisam da CNH para acesso a trabalho e mobilidade.

Esse impacto é ainda mais evidente entre a população de baixa renda. Em muitos estados, o custo para tirar a CNH já ultrapassa os R$ 3 mil. A adição de um exame toxicológico, com preço entre R$ 150 e R$ 250, criaria um mercado compulsório de mais de R$ 500 milhões por ano — beneficiando poucos laboratórios privados, sem ganhos concretos para a segurança viária.

Em 2024, liderei uma pesquisa nacional sobre motociclistas para a Fundación MAPFRE que evidenciou resultados importantes: mais da metade (54%) pilota antes de completar 18 anos e 68,3%, antes de ter CNH. Entre eles, o principal empecilho para tirar a habilitação é seu alto custo. Para jovens, entregadores por aplicativo, trabalhadores informais e moradores de regiões periféricas, o custo adicional do exame toxicológico jogará mais um punhado de trabalhadores na condução ilegal de veículos. Não por acaso, dados recentes da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) revelam que mais da metade dos proprietários de motocicletas no Brasil não tem CNH.

Vale lembrar ainda que o exame toxicológico na primeira habilitação identificaria suposto uso de drogas anterior à obtenção da CNH — portanto, sem qualquer relação com a direção de veículos. E, ironicamente, uma vez habilitado, o condutor não seria mais submetido ao mesmo exame, o que expõe a incoerência da proposta: penaliza antes da habilitação e ignora o comportamento posterior.

Em vez de recorrer a medidas punitivas e inócuas, é preciso investir em soluções eficazes: formação de qualidade, fiscalização com base em evidências, uso de tecnologias apropriadas e educação contínua para o trânsito. A correta decisão do presidente Lula de vetar o exame toxicológico na primeira habilitação evita que um contingente ainda maior seja empurrado para dirigir sem CNH e barra a transferência de volumosos recursos da população para uns poucos laboratórios. A imposição desse exame no processo de habilitação traria mais burocracia, transtorno e fraudes, sem qualquer melhoria na segurança do trânsito.

Por Opinião
postado em 01/07/2025 06:01
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