ARTIGO

Visão do Correio: machismo também leva à baixa fecundidade

Em um país estruturalmente machista, decidir não ser mãe ou ter poucos filhos pode ser também uma questão de sobrevivência

"Não é exagero afirmar que a violência de gênero pode levar mulheres a escolherem não formar grandes famílias ou terem filhos" - (crédito: Kleber Sales/CB/D.A Press)

A queda histórica na taxa de fecundidade no Brasil, detalhada na semana passada pelo IBGE, desperta debates sobre temas como o envelhecimento acelerado do país, a ruptura com a cobrança social pela maternidade, a consolidação do planejamento familiar e o aumento do grau de escolaridade entre as mulheres. Como todo o fenômeno complexo, as possibilidades de análises são diversas. E a perspectiva considerando a relação desigual entre gêneros precisa ser uma delas. Em um país estruturalmente machista, decidir não ser mãe ou ter poucos filhos pode ser também uma questão de sobrevivência.

Se não, como se manter em um mercado de trabalho avesso à maternidade? Não faltam estudos indicando uma taxa de demissão significativa — que deixaria qualquer especialista em alta rotatividade empresarial sem sono — entre as mulheres que voltam da licença-maternidade. Famosa pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) intitulada Mulheres perdem trabalho após terem filhos revela que, depois de 24 meses do afastamento garantido por lei, metade delas sai do mercado. 

Quando não são demitidas, sucumbem a dificuldades como falta de creches, de flexibilidade no horário de trabalho e de alguém para compartilhar os cuidados com a prole. Há de se lembrar que o abandono parental é regra no Brasil. Também o Censo 2022 indica que o número de mães solo é seis vezes maior que o de homens na mesma condição: de todos os adultos que moram sozinhos com os filhos no país, 86,4% são mulheres.

A disparidade salarial deixa o cenário ainda mais desfavorável. Mães solteiras têm a menor renda familiar do país. Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad), referentes a 2022, mostram que o rendimento das mães solo no Brasil é 39% menor do que o dos homens solteiros e com filhos: média de R$ 2.105 e R$ 3.443, respectivamente. A questão de gênero fica ainda mais evidente quando se considera que a renda média dos pais casados é praticamente a mesma da dos pais solos: R$ 3.438.

O cenário tão desfavorável no mundo do trabalho se repete em outras esferas sociais, abrindo espaço para a prática de outros abusos. Portanto, não é exagero afirmar que a violência de gênero pode levar mulheres a escolherem não formar grandes famílias ou terem filhos. Estar grávida ou puérpera é, inclusive, considerado condição de maior vulnerabilidade no formulário de avaliação de risco para feminicídio elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça. Isso porque o parceiro costuma ficar mais violento ao perceber que terá que dividir a mulher com outra pessoa, ainda que seja um filho.

O país que está abaixo do nível de reposição demográfica  — quando a média de filhos necessária para que o tamanho da população se mantenha (2,1 contra 1,55) — é também o que impede mulheres de envelhecerem (10 são vítimas de feminicídio por dia, segundo o Atlas da Violência 2025) e que deixa marcas profundas nas sobreviventes (25% das vítima de violência doméstica têm até 14 anos, sendo 45,7% dos casos ligados à violência sexual, por exemplo). Portanto, precisa urgentemente implementar medidas que revertam ou amenizem todos esses cenários.

Negar a maternidade ou ter poucos filhos é, sem dúvidas, reflexo do imperioso processo de emancipação feminina. Mas seguir um caminho contrário pode ser tão desafiador quanto. Mulheres não devem fazer escolhas, quaisquer que elas sejam, acuadas por um sistema de crenças e práticas que as inferioriza. O Brasil de poucos bebês ainda tem muito a avançar rumo a uma igualdade de gêneros plena. 

Por Opinião
postado em 01/07/2025 06:00
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