
Marcelo Senise — presidente do Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial (Iria), sociólogo e marqueteiro político
Acabamos de testemunhar o primeiro grande duelo de narrativas políticas inteiramente forjado sob a lógica da inteligência artificial (IA) no Brasil — e o que presenciamos é apenas o prelúdio de uma nova era, muito mais profunda e preocupante, que está apenas começando.
Nas últimas semanas, o confronto entre PT e União Progressista foi amplificado e sofisticado por tecnologias que ultrapassam em muito a criatividade dos marqueteiros do passado. O palco já não é apenas o palanque tradicional ou o horário eleitoral: os algoritmos agora decidem, predizem e fabricam emoções, escolhendo quem sente o quê, quando e de que modo. O que está em jogo não é só a disputa por poder, mas o controle quase invisível dos sentimentos da população - e, consequentemente, de suas reações, votos e percepções.
Nesse embate, como eu vinha vociferando há meses, vimos a aplicação inédita da dupla IA preditiva e IA generativa. De um lado, a IA preditiva observa, pixel a pixel, dado a dado, as mínimas variações no humor do eleitorado, antecipando reações, antecipando a maré das redes. Do outro, a IA generativa cria, em segundos, narrativas emocionais sob medida: vídeos, vozes, textos e imagens que não apenas provocam emoção, mas parecem surgir exatamente no instante em que o público mais está receptivo — ou vulnerável.
O PT soube extrair da IA generativa cenas de sofrimento que ganham força porque falam o idioma específico da sua base — o trabalhador que sofre com impostos, o pequeno comerciante angustiado pelas contas, a mãe preocupada com o futuro dos filhos. O roteiro é resultado de milhões de dados processados, não mais de um palpite de marqueteiro genial. Simultaneamente, e em resposta, o União Progressista usou exatamente os mesmos elementos gráficos e algoritmos para identificar as maiores dores da classe média e dos empreendedores, desenhando peças perfeitas para alimentar o medo do Estado inchado e a indignação pelo custo de vida.
Mas o que estamos testemunhando é apenas a superfície. A combinação das duas IAs cria um ciclo sinistro: a preditiva monitora e ajusta em tempo real, medindo o impacto de cada peça; a generativa lança novas mensagens, cada vez mais refinadas, segmentadas, impossíveis de serem ignoradas porque falam direto ao inconsciente coletivo. Não são apenas deepfakes ou textos falsos — é engenharia emocional. A cada clique, a cada deslizar de tela, a máquina aprende o que funciona e volta mais agressiva, mais certeira.
O perigo é silencioso, mas gigantesco. O cidadão pensa estar exercendo sua vontade e senso crítico, mas, na verdade, reage a emoções fabricadas para ele. O debate político se reduz a gatilhos emocionais calculados. A polarização se intensifica: tudo que não reforça a própria "verdade" passa a ser descartado. A inteligência artificial começa a sequestrar até o direito de dúvida.
A democracia, nesse modelo, entra em xeque. Não apenas pelo risco de manipulação massiva, mas pelo empobrecimento do próprio diálogo público: os partidos, munidos de supermáquinas, deixam de disputar ideias e passam a competir por quem consegue manipular mais sentimentos em menos tempo. E o cidadão alimenta bolhas emocionais, convencido de que está mais informado, quando, na verdade, está apenas mais polarizado e previsível.
O primeiro grande embate digital pode ter passado, mas sua lição é clara: estamos apenas no prólogo de uma revolução. O que virá adiante será ainda mais preciso, mais invasivo e subliminar. Ou a sociedade reage — exigindo regulamentação, transparência e ética — ou corre o risco de se ver como mera peça em um jogo onde o algoritmo decide até mesmo aquilo que pensamos ser desejo ou opinião própria.
Não podemos mais nos dar ao luxo de ser espectadores. Precisamos entender o funcionamento dessas máquinas, pressionar por regras claras e educar para a nova era. Ou a democracia evolui junto da tecnologia, ou ficará à mercê dela.
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