ARTIGO

O mal-estar na cultura da maternidade

Se queremos entender porque as taxas de fecundidade caem, precisamos começar investigando quais constrangimentos as mulheres sofrem para serem mães

Janaína Penalva. Professora de direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB) -  (crédito: Arquivo Pessoal )
Janaína Penalva. Professora de direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB) - (crédito: Arquivo Pessoal )

Por Janaína Penalva* e Nayara Teixeira**— O último censo populacional demonstrou que a taxa de fecundidade no Brasil está em queda histórica, com 1,55 filho por mulher. Um dia, depois do espanto social com esse número, por magia ou pela mão do Universo, o inesperado aconteceu: o espírito de um novo tempo tomou conta das mulheres brasileiras. Um dia, acordaram decididas a não terem mais filhos. As meninas com mais de 10 anos decidiram que não iriam mais cuidar de seus irmãos, as mulheres em idade reprodutiva não levariam mais nenhuma gravidez a termo, as avós iriam esquecer suas netas e netos, as vizinhas passariam a ignorar os apuros das crianças ao lado e as trabalhadoras domésticas deixariam seus trabalhos para sempre. 

Nenhuma mulher participaria mais de processos de adoção, de fertilização in vitro ou cederia seu útero em aluguel. As poucas mulheres com filhos sob cuidado de homens fariam apenas transferências bancárias com nome de pensão alimentícia, as que sobreviveram ao feminicídio e ao estupro optariam por viver isoladas dos homens e as trabalhadoras do sexo encerrariam os encontros presenciais. O Sol nasceu e não haveria mais mães solo e mulheres cuidadoras. O temido fim da humanidade estaria definido? Os homens sentiram medo. Para conter os "riscos civilizatórios" dessa magia, desenvolveram técnicas de reprodução por óvulos sintéticos, úteros artificiais e uma robótica de cuidados com habilidades para fazer uma criança se transformar em um adulto. Depois de algumas décadas, avaliando as causas desse mundo novo, um pesquisador diria: a culpa é do feminismo. 

Esse exercício imaginativo não diz nada sobre o que as mulheres desejam ou sobre o que os feminismos reivindicam. Nada do que o coletivo das mulheres reúne se aproxima de um mundo sem reprodução humana. Nem um útero sintético ou um robô cuidador seria capaz de neutralizar a dimensão moral da questão: o mal-estar na cultura da maternidade. 

Na década de 1970, surgiu, nos Estados Unidos, uma organização de mulheres que não queriam ter filhos e reivindicavam não apenas o direito de escolha sobre a maternidade, mas uma mudança cultural que pudesse fazer dessa escolha uma opção de vida como qualquer outra. Era o auge da segunda onda do feminismo, em que o foco era a autonomia das mulheres sobre seus corpos. Esse é o movimento childfree, uma posição política que diz respeito à escolha consciente e voluntária das mulheres de não serem mães. 

O childfree nunca foi um movimento grande e nem unânime nos feminismos. Algumas críticas, especialmente do feminismo negro, apontam que o questionamento da maternidade compulsória, como levantado pelo movimento childfree, tem uma perspectiva branca e de classe. Mulheres negras e pobres lutam pelo direito de ter seus filhos e criá-los com dignidade e segurança. No Brasil, essa crítica é precisa. A escravização sexual das mulheres negras as impediu de conceber, viver e cuidar dos próprios filhos, seja pelo assassinato, seja pelo sequestro para escravidão ou para a posição de filhos ilegítimos dos senhores brancos. A escravidão negra não terminou, se atualizou na violência doméstica, no feminicídio e na precarização do trabalho. 

Nem uma Constituição ou tratado de direitos humanos foi capaz de desfazer a divisão sexual do trabalho. Porém, mais que reconhecer as duplas e triplas jornadas, mulheres negras e brancas querem sobreviver sem o custo da exaustão e da precariedade de renda e trabalho. Queremos experimentar outras maternidades ou, simplesmente, não queremos experimentá-la, porque o desejo é maior (e melhor) que o "instinto". O que a cultura entende como "instinto maternal" é, na pele das mulheres, puro mal-estar.  

Essa discussão, a denúncia das mulheres sobre a invisibilidade do trabalho de cuidar, leva o espanto com a taxa de fecundidade a um outro lugar: a responsabilidade das mulheres pelas crianças, pelo futuro, pela família. Não faz muito tempo que se disse, em rede nacional, que o adulto que está na prisão é filho de mãe solteira. É cotidiana a certeza de que a criança agressiva é filha de uma mãe ausente e de que aquela fora da norma heterossexual "deu errado" porque foi negligenciada pela mãe. Todo mundo conhece o menino da escola que chora muito porque foi criado pela avó. Quem nunca disse, diante de um mal comportamento social: "Ei, não tem mãe, não!?" 

Nenhuma mulher cuida apenas dos filhos que gera e tampouco é a única responsável pelo que se constrói na infância e na família. Os cálculos estatísticos sobre a fecundidade estão errados: deveria importar quantas mulheres existem por criança e não quantos filhos existem por mulher. Ou seja, a investigação sobre a fecundidade não pode ser deslocada da crítica sobre quem garante a reprodução social. Hoje, o que as mulheres vivem é esse mal-estar permanente, essa sensação de que não podem ter desejos genuínos.

Aquela imaginação que cria um mundo sem reprodução não nos interessa politicamente. Se queremos entender porque as taxas de fecundidade caem, precisamos começar investigando quais constrangimentos as mulheres sofrem para serem mães. Quem guia o caminho até a resposta é o feminismo, o nome escolhido para organizar as vozes que dizem o que é desejo e o que é imposição cultural.

Professora de direito constitucional da Universidade de Brasília*

Doutoranda em direito pela UnB**

 

postado em 06/07/2025 06:00 / atualizado em 06/07/2025 09:14
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