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Hackers ou analfabytes: quem governa o Brasil na Era Digital?

Representantes da sociedade civil, movimentos sociais, comunidade técnica e parlamentares reúnem-se hoje e amanhã, em Brasília, para uma aula pública e início da construção coletiva de um Plano Nacional pela Soberania Digital

PRI-0807-OPINI2 -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0807-OPINI2 - (crédito: Maurenilson Freire)

BEÁ TIBIRIÇÁ, diretor do Coletivo Digital, e UIRÁ PORÃ, hacker, gestor público e co-idealizador do Movimento FeliciLab

Nós, que atuamos com cultura digital no Brasil há mais de duas décadas — e nos identificamos como hackers — já vivemos muitas vezes uma cena comum. Quase sempre que vamos conversar com gestoras públicas, parlamentares e lideranças sociais sobre políticas para o mundo digital, ouvimos, quase como um gesto de culpa e cumplicidade:

"Olha, eu sou analfabeto digital." ou "Eu não entendo muito desse assunto."

Essas frases, geralmente ditas com humildade e sinceridade, não são um problema em si. Mas revelam algo muito importante: o reconhecimento de que existe uma dimensão da vida pública — a dimensão digital — que ainda está distante das pessoas que tomam decisões sobre ela.

Mas esse reconhecimento também nos convida a olhar para um desafio maior. A tecnologia está no centro da economia, da cultura, do trabalho, da educação, da segurança pública e da democracia. Se o Estado não tem gente que entenda profundamente desses sistemas — suas lógicas, suas infraestruturas, seus códigos —, quem vai ter esse poder? A resposta, na prática, tem sido uma só: as grandes empresas de tecnologia. É por isso que queremos falar sobre a importância das pessoas hackers.

E quando dizemos "hacker" não estamos falando de criminosos ou invasores de sistemas. Esse é um estereótipo equivocado, muitas vezes, reforçado pela mídia. Hacker, na origem do termo, é alguém que entende profundamente como as coisas funcionam — e usa esse conhecimento para explorar, melhorar, adaptar e resolver problemas de forma criativa.

Um bom exemplo é o chaveiro. O chaveiro conhece as fechaduras. Sabe abrir, desmontar, consertar, criar chaves. Isso o torna perigoso? Não. Isso o torna útil. E, como em qualquer profissão, o uso desse conhecimento depende da ética. A ética hacker — que é o que defendemos e representamos — não arromba casas: ele ajuda a abrir portas quando as chaves quebram.

A internet foi criada por pessoas assim. Os protocolos abertos, os softwares livres, as redes distribuídas, a cultura digital colaborativa — tudo isso tem raízes no trabalho de comunidades hacker. Essas pessoas não só entendem o funcionamento do mundo digital, como constroem alternativas para ele. No Brasil, há décadas, desenvolvem tecnologias livres, redes comunitárias, metodologias de ensino, formas de cuidado com os dados e com as pessoas.

O problema é que, por muito tempo, essas pessoas ficaram fora do governo. E o resultado é o que vivemos hoje: uma enorme distância entre o conhecimento técnico e a formulação das políticas públicas. Mas algo está mudando.

Em maio de 2025, durante o encontro da Rede Sacix, um grupo de pessoas hackers participou de uma roda de conversa com um deputado federal. Foi ali, de forma direta e respeitosa, que colocamos o que há muito tempo precisa ser dito: o Brasil só vai conseguir garantir sua soberania digital se incorporar esse conhecimento à gestão pública. Essa conversa foi o ponto de partida para uma articulação inédita entre sociedade civil, movimentos sociais, comunidade técnica e parlamentares.

Dessa semente nasceu o que hoje chamamos de Frente pela Soberania Digital. E, hoje (8/7) e amanhã, em Brasília, vamos realizar o Encontro Nacional Soberania Já! (www.soberania.digital/encontro), com uma aula pública e o início da construção coletiva de um Plano Nacional pela Soberania Digital. Esse plano não é só técnico, é tecnopolítico. É sobre garantir que o Brasil tenha capacidade de decidir seu próprio destino no mundo digital — com justiça, transparência, inclusão e inteligência coletiva.

O reconhecimento de que "não entendemos muito bem esse assunto" é o primeiro passo. O segundo é convidar quem entende para construir junto. Não para dominar o debate, mas para compartilhar saberes. E, a partir daí, desenhar políticas públicas à altura dos desafios que vivemos. Estamos indo para Brasília com esforço coletivo, vaquinhas e recursos próprios — porque acreditamos que essa mudança não é só possível, é necessária.

Nos primeiros governos, Lula sempre esteve rodeado de hackers. Foi um ministro hacker, Gilberto Gil, que abriu as portas do Ministério da Cultura para o software livre, a cultura digital e a colaboração em rede, criando políticas digitais reconhecidas no mundo inteiro.

Agora, voltamos a nos apresentar. Não para pedir cargos ou favores, mas para dizer que estamos aqui para garantir que as tecnologias digitais deixem de ser ferramentas de dominação de bilionários e extremistas, e sejam apropriadas pelo povo brasileiro, para servir à vida, ao meio ambiente e à democracia.

 

postado em 08/07/2025 06:00
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