ARTIGO

A ignorada polarização secular

Quando se fala em polarização, o foco recai quase sempre sobre disputas ideológicas e não sobre a desigualdade social. A polarização social sempre foi negligenciada no Brasil, invisível aos olhos da política e dos analistas

Entre 1822 e 1889, o Brasil atravessou períodos de polarização política, sem perceber a polarização social entre os brasileiros escravos e seus senhores -  (crédito: Maurenilson Freire)
Entre 1822 e 1889, o Brasil atravessou períodos de polarização política, sem perceber a polarização social entre os brasileiros escravos e seus senhores - (crédito: Maurenilson Freire)

CRISTOVAM BUARQUE, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

A verdadeira polarização brasileira não é política. Ela se revela no contraste entre o salário mínimo recebido por um trabalhador sem acesso a serviços públicos de qualidade, quando não está desempregado, e os supersalários pagos a servidores do Estado, com estabilidade garantida até mesmo depois de aposentados por corrupção, custeados com recursos públicos que poderiam financiar os serviços dos quais esse trabalhador carece. Ainda assim, quando se fala em polarização, o foco recai quase sempre sobre disputas ideológicas, e não sobre a desigualdade social.

Entre 1822 e 1889, o Brasil atravessou períodos de polarização política, sem perceber a polarização social entre os brasileiros escravos e seus senhores. Depois da abolição e da República, tivemos momentos de polarização política, mas ignoramos a desigualdade social entre quem vive nas favelas e quem habita condomínios fechados; entre os que têm água tratada em suas piscinas e os que não têm água potável para beber.

A polarização social sempre foi negligenciada, invisível aos olhos da política e dos analistas. Parafraseando o economista e acadêmico Edmar Bacha, "dentro de um mesmo país, vivem os que estão na Bélgica e os que estão na Índia", sem que essa polarização seja enfrentada, nem ao menos reconhecida. Felizmente, o presidente Lula trouxe o tema ao tratar da disputa fiscal, quando usou a expressão "andar de baixo", onde sobrevivem os de baixa renda, e "andar de cima", onde vivem aqueles com rendas elevadas.

Essa polarização só se tornou visível com a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Emenda do Teto de Gastos e seu sucedâneo Novo Arcabouço Fiscal, que trouxeram a exigência de equilíbrio nas contas públicas. Até então, os governos amorteciam os conflitos sociais distribuindo benefícios ao "andar de baixo" sem tocar nos privilégios do "andar de cima", financiando tudo com emissão de moeda ou de dívidas públicas. Isso acabava punindo especialmente os mais pobres, via inflação e juros altos, enquanto os ricos se protegiam com dólar, ouro, imóveis e ativos financeiros corrigidos monetariamente.

Ao reconhecer que há um limite para os gastos públicos, a polarização social deixa de ser invisível. Medidas como a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais passam a exigir o aumento de impostos para quem ganha mais de R$ 1 milhão; benefícios sociais exigem o fim de isenções fiscais injustificadas; reajuste de salário mínimo exige enfrentar os gastos com supersalários; atender às emendas parlamentares implica cortar verbas de áreas prioritárias do Executivo.

O Brasil começa a entender que não se distribui riqueza por mágica, com dinheiro inexistente: para beneficiar um grupo carente, é preciso retirar privilégios de outro grupo, respeitando os limites fiscais e econômicos. Justiça social não é apenas cobrar mais impostos de quem tem, também é investir esses impostos a favor de quem não tem.

Não basta arrecadar mais dos ricos se o dinheiro continuar financiando mordomias, avalanche de emendas parlamentares, supersalários, aposentadorias especiais, prejuízos de estatais, corrupção e ineficiência; é preciso oferecer uma escada para que todos possam subir ao "andar de cima". Essa escada é a educação básica de máxima qualidade, igual para todos, independentemente do "andar" em que o brasileiro nasce e vive.

O caminho para superar a polarização social começa por garantir equidade na qualidade da escola de base. A polarização não teria persistido se, há 140 anos, a Lei Áurea tivesse incluído um segundo artigo: "Fica criado um sistema nacional de educação em que estudarão juntos os filhos dos ex-escravizados e os filhos dos ex-senhores".

Os governos democráticos investiram mais nos "andares" onde poucos concluíram o ensino médio do que nos "andares" onde dezenas de milhões permanecem analfabetos plenos ou sem educação de base adequada. Com as cotas para ingresso no ensino superior, elevaram o número de universitários, beneficiando inclusive alguns poucos vindos do "andar de baixo", mas não reduziram o número de adultos analfabetos, nem universalizaram a conclusão de um ensino médio com qualidade. Permitiram até que se aumentasse a brecha entre a qualidade da educação dos filhos dos "andares de cima" e a dos filhos dos "andares de baixo".

A polarização social só será vencida quando o sistema escolar brasileiro deixar de ser dividido entre "escolas para o andar de cima" e "escolas para o andar de baixo", e o Brasil tiver um sistema nacional, igualitário, para a educação de base de todas as crianças.

Por Opinião
postado em 09/07/2025 06:01
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