
Isabel B. Schmidt — professora do Departamento de Ecologia da UnB e pesquisadora da Rede Biota Cerrado; Ane Alencar — diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e integrante do MapBiomas
O Brasil se sente eternamente jovem, como se não precisasse ter pressa de se proteger. É essa alegada imaturidade que nos mantêm no topo dos países que mais desmatam no mundo. É nesse espírito de postergação que prosperam propostas temerárias, como o Projeto de Lei 2.159/2021, que tenta enfraquecer o licenciamento ambiental, abrindo caminho para ações destrutivas que nos afastam cada vez mais de um futuro desejável.
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Por aqui, relatórios numéricos mostrando as consequências de nossas ações em séries históricas consistentes são raros, e muito necessários. Em 24 de junho, o MapBiomas Fogo lançou sua 4ª coleção (https://brasil.mapbiomas.org/mapbiomas-fogo/), aprimorando o monitoramento da ocorrência do fogo no Brasil nos últimos 40 anos. Em 2024, foram mais de 30 milhões de hectares queimados, somente 700 mil hectares a menos que em 2007, o recorde da série histórica.
Incêndios descontrolados são prejudiciais para a natureza, para o clima e para todos nós, seja pelos seus efeitos diretos, como a fumaça que afetou milhões de pessoas em 2024, seja por seus impactos cumulativos em um planeta cada vez mais instável. O dado mais assustador do Relatório Anual do Fogo (RAF) de 2024 não é apenas a extensão da área queimada, mas o fato de quase 26% dessas áreas serem florestas nativas. Florestas ricas em animais e plantas, essenciais para a regulação climática e a produção de água, que, em 2025, já não cumprem essas funções da mesma forma.
Muitos desses incêndios foram criminosos e claramente associados a atividades de desmatamento e grilagem. É o fogo abrindo espaço para os tratores, para a invasão de terras, para a violência no campo.
Notícias assim podem nos fazer pensar que o fogo é sempre vilão, devendo ser, então, evitado, proibido. Contraintuitivamente, uma das boas notícias relacionadas à prevenção e ao combate a incêndios em 2024 foi a aprovação da Lei 14.944/2024, que não proíbe mas, sim, regulamenta o uso do fogo, de forma controlada, planejada e responsável.
É permitindo e regulamentando usos controlados do fogo que conseguiremos punir criminosos que causam incêndios. Associado à Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF) tivemos outros avanços, como mudanças na duração de contratação de brigadistas pelo governo federal (MP 1.239/2024), aumento das punições a quem causa incêndios (Decreto 12.189/2024) e linhas de financiamentos para que estados e municípios elaborem Planos de Manejo Integrado do Fogo.
A PNMIF se baseia em três pilares: o manejo do fogo, a ecologia e a cultura de uso do fogo controlado. A ecologia nos informa que alguns ecossistemas brasileiros conviveram com o fogo natural há milhões de anos. Nestas áreas, não florestais, de campos e savanas, onde capins cobrem o solo e convivem com árvores, raios iniciavam incêndios.
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Esses eventos se espalhavam por grandes extensões, quando o ambiente ainda se encontrava em equilíbrio ecológico, sem grandes interferências humanas. Nesses ambientes, tentar evitar qualquer fogo faz capins secos se acumularem e virarem combustível para incêndios catastróficos.
Por outro lado, florestas nunca conviveram com fogo natural, já que a vegetação úmida e sem folhas finas e secas dos capins não permite que um fogo natural, iniciado por um raio, se alastre para grandes áreas. Por isso, florestas incendiadas viram florestas degradadas, empobrecidas e ameaçadas. Nas florestas, o fogo deve ser sempre evitado.
A cultura do fogo nos conta que a humanidade evoluiu usando fogo, para cozinhar alimentos e manejar paisagens. A série de dados do MapBiomas nos mostra que esse uso se tornou desordenado e predatório. Reconhecer o fogo como ferramenta de manejo é justamente planejar seu uso responsável. Já o manejo do fogo traz para a sociedade e para os governos em todos seus níveis a responsabilidade de uso racional do fogo.
Todo brigadista florestal e todo bombeiro sabe que o fogo é um péssimo patrão. Nos ameaça e faz trabalhar em condições insalubres. Mas ele pode ser um ótimo empregado. Quando bem manejado, o fogo controlado nos protege de incêndios e protege nossas áreas naturais.
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Se assumirmos nossas responsabilidades de país mais biodiverso do mundo e nos comprometermos em ser de fato o país do futuro, as próximas séries de dados nos mostrarão um país que sabe usar o fogo e cuidar de seus ambientes naturais que restam. Para que nossa natureza possa continuar nos garantindo água, saúde e vida.
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