ARTIGO

A votação do PL da Devastação e a derrubada do IOF: caroços de um mesmo angu?

A derrubada do IOF e o desmantelamento do licenciamento correspondem, no plano político, à materialização de uma visão de mundo retrógrada, calcada na exclusão social e no desenvolvimento predatório do país

PRI-0807-ENTRELINHAS -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0807-ENTRELINHAS - (crédito: Maurenilson Freire)

GABRIELA NEPOMUCENO, especialista em políticas públicas do Greenpeace Brasil

O enfrentamento político em torno ao IOF tem dado maior visibilidade ao conflito de interesses envolvendo o Orçamento Público, principal instrumento de planejamento governamental, distribuição de recursos e de garantia de direitos. O episódio, que ganhou as redes sociais, revelou as disfuncionalidades do nosso sistema político, em especial as que envolvem as prerrogativas do Congresso Nacional. 

Apontado como um dos maiores retrocessos na legislação ambiental dos últimos 40 anos, o PL da Devastação desmantela o principal mecanismo da política de proteção ambiental no país. Enquanto deputados e senadores atropelam a Constituição e a legislação ambiental para incrementar o lucro de grandes empresas, populações potencialmente atingidas, como indígenas e povos de comunidades tradicionais, estão levando o devido "cala boca" da futura lei.

Um dos aspectos mais devastadores da proposta reside na ruptura da lógica do processo de licenciamento ambiental, cujas regras buscavam equilibrar o desenvolvimento econômico e o meio ambiente. Ao permitir que a maior parte dos empreendimentos e obras sejam beneficiados com o autolicenciamento, sem estudos de impacto socioambiental prévios e sem participação social, o Congresso Nacional troca a vistoria por "confia" e encoraja a ocupação predatória do espaço urbano e dos territórios. 

A dispensa de licença para atividades do agronegócio é outra inversão do texto. O agronegócio, que depende de recursos naturais e é umas das atividades que mais emitem gases de efeito estufa, deveria ser o primeiro a defender regras claras, não o primeiro a derrubá-las. Não se constrói futuro quebrando a legislação, ignorando a ciência e a prevenção, porque o resultado previsível disso é a perda de vidas, desastres e judicialização.

Mas qual a relação entre o IOF e o meio ambiente, afinal? A derrubada do IOF e o desmantelamento do licenciamento correspondem, no plano político, à materialização de uma visão de mundo retrógrada, calcada na manutenção de privilégios, em práticas clientelistas, na exclusão social e no desenvolvimento predatório do país. As modificações promovidas pelo Congresso nas regras orçamentárias e regimentais vêm acentuando deturpações e promovendo disfunções na repartição de competências entre os entes federados e no sistema presidencialista. Em última instância, perpetuam um modus operandi que restringe o bom exercício da política e reduz os espaços de participação social.

As emendas impositivas e suas derivações permitiram a desconcentração de recursos, aplicados sem planejamento ou transparência, comprometendo-se a capacidade da União para a implementação de políticas públicas. Portanto, a ascensão do orçamento secreto serviu à interferência de interesses políticos e eleitorais na repartição das receitas públicas. A negociata se sobrepôs à política e aos critérios técnicos de aplicação de recursos.

Há um outro elemento dessa conjuntura que poucos veículos de comunicação valorizam. Desde a pandemia, o parlamento vem aprovando mudanças regimentais que concentram mais poderes nas mãos do Congresso, sobretudo no presidente da Câmara. Desde a gestão Lira, por exemplo, as comissões mistas, que apreciavam as medidas provisórias enviadas pelo Executivo, deixaram de ser convocadas, com raras exceções. O processo legislativo constitucional das medidas provisórias, embora referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), foi simplificado, reduzindo-se o espaço do debate público e a participação da sociedade civil na definição de políticas.

A apreciação do PL da Devastação seguiu a mesma lógica. A votação remota permite a ausência dos deputados no plenário — basta que apertem um botão, longe das câmaras e da pressão da sociedade civil organizada. Como consequência desse cenário, o que vemos é uma enxurrada de propostas que agridem o acesso a direitos socioambientais, promovem o desmatamento dos biomas, sobretudo da Amazônia, e destroem a forma de vida e a existência de populações inteiras. 

O tratoraço nas votações que beneficiam o andar de cima e comprometem os direitos da população evidencia o pouco compromisso de nossas elites econômicas com a defesa da vida, com o combate às desigualdades sociais e raciais, com a promoção do desenvolvimento sustentável e, por fim, com o bem comum e o bem-viver. O parlamento, em sua grande maioria, permanece alheio aos eventos climáticos extremos, assim como vem ignorando as necessidades e condições de vida da população.

 

 


Por Opinião
postado em 17/07/2025 06:00
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