OPINIÃO

Quando um jornalista morre

"Quando um jornalista morre, o mundo não para. A profissão não se refaz. Mas a história insiste em nos ensinar que a vulnerabilidade da imprensa profissional precisa ser levada a sério"

A morte de Anas al-Sharif chamou a atenção do mundo para os riscos de exercer o jornalismo -  (crédito: AFP)
A morte de Anas al-Sharif chamou a atenção do mundo para os riscos de exercer o jornalismo - (crédito: AFP)

A investida israelense contra o Hamas se transformou em uma verdadeira tragédia humanitária para os palestinos de Gaza. Autoridades internacionais do mundo inteiro alertam para a grave situação enfrentada pela população civil em uma guerra que, diariamente, soma milhares de vítimas. Mais do que "alertas", o mundo assiste, impotente, ao caos que mais uma vez se repete na região. E quem transmite as imagens mais duras desse cenário são os jornalistas — profissionais que, além de testemunhas, têm se tornado alvos de ataques assombrosos.

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Desde a morte de Anas al-Sharif — repórter da emissora Al Jazeera, do Qatar —, em 10 de agosto, a situação dos jornalistas em Gaza ganhou ainda mais atenção. Dados divulgados pelo Memorial Freedom Forum, na última quarta-feira (27/8), revelam que 246 jornalistas morreram na guerra de Israel contra o Hamas. O número supera o total de mortes da categoria em qualquer outro conflito da história da humanidade e mais do que dobra as registradas na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais.

A vida de um jornalista não tem mais valor do que a de qualquer outra pessoa. No entanto, a morte desses profissionais representa um ataque direto à liberdade — pois busca silenciar a informação, encobrir a verdade e, ao mesmo tempo, resulta na perda de incontáveis vidas.

Jornalistas são constantemente transformados em alvos. Não apenas em Gaza, não apenas em guerras, mas também no cotidiano. Recordo as imagens que revelaram a morte do cinegrafista Santiago de Andrade, em 2014, em São Paulo. Um rojão atingiu-lhe a nuca antes de a imagem congelar nos televisores de todo o país. Andrade cobria as manifestações que tomavam conta do Brasil.

Já em 2018, eu trabalhava na redação, uma equipe de reportagem do Correio Braziliense foi atacada em frente à sede da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Enfurecidos, os agressores gritavam ofensas contra a imprensa, em defesa do ex-presidente Lula, que havia tido a prisão decretada pelo então juiz Sergio Moro no dia anterior. Ninguém morreu, mas a memória daquela noite continua vívida em mim.

Durante as eleições de 2022, enquanto centenas de bolsonaristas acampavam em frente aos quartéis-generais, a cena se repetiu. Incontáveis colegas de profissão foram hostilizados e expulsos de espaços públicos apenas por exercerem o ofício. Nunca me esquecerei de uma repórter que chegou chorando à redação após sofrer violência verbal de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro.

As ameaças ao jornalismo não são novidade, mas ganharam contornos mais graves com ferramentas modernas. As redes sociais trouxeram avanços, mas também retrocessos. O jornalismo se viu forçado a migrar para o digital, onde milhares de páginas passaram a se apresentar como "jornais". Sem a devida formação e responsabilidade, contudo, a comunicação tropeça, e a credibilidade do jornalismo profissional volta a ser atacada.

Quando um jornalista morre, o mundo não para. A profissão não se refaz. Mas a história insiste em nos ensinar que a vulnerabilidade da imprensa profissional precisa ser levada a sério — porque, quando a verdade é silenciada, a liberdade morre.

 

postado em 01/09/2025 06:01
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