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Segurança pública: armas, crime e evidência empírica

Ainda que o Legislativo se opusesse, Bolsonaro conseguiu ampliar a posse de armas por moradores de áreas rurais e aumentar o limite anual de compra de munições de 50 para 550 unidades

Armas Violência Brasil Opinião -  (crédito: Caio Gomez)
Armas Violência Brasil Opinião - (crédito: Caio Gomez)

IVAN RIBEIRO, coordenador e pesquisador principal do Centro de Estudos da Ordem Econômica (CEOE) e Fellow da Society for Empirical Legal Studies (SELS). Professor de direito e políticas públicas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus Osasco, e JOHN DONOHUE III, economista e C. Wendell e Edith M. Carlsmith professor of Law da Universidade de Stanford

No meio de junho deste ano, o Instituto de Pesquisas Datafolha publicou uma enquete que antecipa o que deve ser um dos debates mais quentes nas eleições presidenciais de 2026. A pesquisa mostrou que 29% dos entrevistados consideram que o governo Lula foi pior ou muito pior do que o governo de Jair Bolsonaro na gestão da segurança pública. O governo anterior foi avaliado como melhor ou muito melhor por 46% dos respondentes.

Cerca de um mês antes, o Atlas da Violência de 2025, fruto da parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), indicava que houve 45.747 homicídios em 2023, resultando em uma taxa de 21,2 casos por 100 mil habitantes. Trata-se da menor taxa em 11 anos. A comparação entre os dois governos faz sentido, pois adotaram abordagens diametralmente opostas no combate à violência, especialmente no que diz respeito ao porte de armas.

Ainda no início do governo Lula, em 2023, um dos autores deste artigo foi contatado por John Lott, um conhecido e controverso defensor do direito às armas. Ele propôs uma aposta de mil dólares afirmando que a revogação do decreto de Bolsonaro que flexibilizava o controle de armas levaria ao aumento da criminalidade no Brasil, já que cidadãos cumpridores da lei não teriam acesso a armas para autoproteção.

Na segunda semana de março, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram manter a validade do Decreto Presidencial nº 11.366/2023, que suspendeu o registro de aquisição e transferência de armas e munições de uso restrito, bem como a concessão de novos clubes de tiro e licenças para colecionadores, atiradores e caçadores.

O presidente Lula assinou o decreto em 1º de janeiro, durante sua posse, em um gesto carregado de simbolismo. Essa decisão foi acompanhada por outras, culminando na declaração de inconstitucionalidade de diversos decretos e atos infralegais relacionados a armas e munições pelo STF em setembro de 2023. 

Observou-se no período 2019-2022 um crescimento da violência política e doméstica, com episódios chocantes de tiroteios e ameaças armadas por motivos triviais, além de abusos contra mulheres, crianças e grupos vulneráveis. 

Nos últimos 40 anos, a política de armas nos Estados Unidos (EUA) passou por grandes mudanças. Até 1980, a maioria dos estados americanos proibia ou restringia o porte velado de armas, autorizando-o apenas para indivíduos com licença especial. Desde então, essas restrições foram amplamente flexibilizadas, e a maioria dos estados adotou leis de Direito ao Porte (Right-to-Carry — RTC), que impõem exigências modestas, ou nenhuma exigência para o porte velado por cidadãos legalmente autorizados. Em 2023, 25 estados não exigiam nenhuma licença especial para portar armas em público.

Um estudo empírico publicado em 2025, com participação de um dos autores deste artigo, analisou dados de 217 cidades dos EUA entre 1979 e 2019 para verificar se o regime RTC elevou os crimes com armas. O estudo focou especialmente nas 65 maiores cidades (com população média superior a 250 mil habitantes), onde os efeitos se mostraram mais pronunciados.

A pesquisa sugere que a hesitação policial em enfrentar uma população civil mais armada, ou o tempo adicional despendido com abordagens mais cautelosas, seriam fatores relevantes. Particularmente alarmante foi o crescimento de aproximadamente 50% nos roubos de armas, injetando milhares de armas no mercado ilegal a cada ano.

Diante da resistência do Congresso Nacional, o então presidente recorreu a decretos para implementar sua agenda. Ainda que o Legislativo se opusesse, Bolsonaro conseguiu ampliar a posse de armas por moradores de áreas rurais e aumentar o limite anual de compra de munições de 50 para 550 unidades. Ao todo, seu governo editou mais de 40 decretos e atos normativos com esse objetivo. O número de armas nas mãos de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) ultrapassou um milhão, um aumento de 187% em relação ao governo anterior.

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A revisão de grande parte dessas normas pelo STF ainda em 2023 pode ter contribuído para a redução dos homicídios. Dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) apontam essa tendência, mostrando 42.190 homicídios em 2022, 40.464 em 2023 e 38.722 em 2024.

De fato, enquanto os EUA experimentaram quatro décadas de flexibilização gradual das restrições ao porte velado, o Brasil vivenciou uma expansão acelerada do acesso às armas durante o governo Bolsonaro. Ambos os países enfrentam agora a necessidade urgente de compreender empiricamente os efeitos dessas políticas para orientar reformas regulatórias e o desenho de políticas públicas baseadas em evidências.

 


postado em 02/09/2025 06:03
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