
Em um dos períodos mais nefastos da nossa história, canções com letras cifradas conseguiam gritar a dor que as vozes sufocadas pela força bruta não podiam. Com Apesar de você, por exemplo, Chico Buarque evidenciava a tirania imposta ao povo pela ditadura militar: "Hoje você é quem manda; falou, tá falado, não tem discussão, não. A minha gente hoje anda falando de lado, e olhando pro chão".
Na composição Cartomante, Ivan Lins e Vitor Martins alertavam para os perigos daqueles tempos sombrios: "Nos dias de hoje, não dê motivo, porque, na verdade, eu te quero vivo". Em Pesadelo, Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós falavam de resistência ante a truculência: "Você corta um verso, eu escrevo outro; você me prende vivo, eu escapo morto".
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Fiquei comovida ao revisitar as letras desses hinos contra os horrores dos anos de chumbo. Uma viagem que fiz graças ao professor Pasquale Cipro Neto, no programa Estúdio CBN, da sexta-feira passada, um dia depois de a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anunciar a condenação histórica de um ex-presidente da República por atentar contra a nossa democracia.
As músicas que o professor levou ao ar, compostas durante a ditadura, denunciavam a violência e a opressão — três delas são as que reproduzi, em trechos, no começo deste texto. Numa época de total supressão de direitos, os autores, evidentemente, tinham de usar metáforas para driblar a censura.
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Esse mergulho me fez refletir. Apesar do sentimento de justiça que tive com o veredito do STF, eu ainda não havia alcançado, de fato, a plena dimensão da decisão tomada pela Corte. O que quatro dos cinco ministros fizeram nesse histórico 11 de setembro de 2025 foi sentenciar exemplarmente quem tentou trazer de volta ao país um regime atroz, que subjugou todo um povo, durante mais de duas décadas, que reprimiu, torturou, estuprou, assassinou.
Brutalidade que não poupava nem mesmo crianças. A vítima mais jovem da ditadura, Carlos Alexandre, tinha 1 ano e oito meses, em 1974, quando foi agredido com um soco e jogado ao chão por ter chorado quando agentes da repressão invadiram sua casa, em São Paulo, à procura dos seus pais, considerados subversivos.
Levado por militares, o bebê ficou 15 horas em poder deles. Segundo relatos, foi torturado com choques elétricos. Ele nunca se recuperou do trauma. Tomava antidepressivos e antipsicóticos e tinha fobia social. Em 2013, tirou a própria vida.
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Perceba o peso da decisão do STF na semana passada. O monumental serviço que a mais alta Corte deste Brasil prestou à nossa história, passada, presente e futura.
Termino com o trecho da quarta música tocada no programa na sexta-feira, impactante já no título: Aos nossos filhos. Uma letra, de Ivan Lins, que nos comove profundamente. "Perdoem por tantos perigos, perdoem a falta de abrigo, perdoem a falta de amigos. Os dias eram assim. Perdoem a falta de folhas, perdoem a falta de ar, perdoem a falta de escolha. Os dias eram assim. Quando brotarem as flores, quando crescerem as matas, quando colherem os frutos, digam o gosto pra mim." Os dias eram assim. Cuidemos para que nunca mais voltem a ser..
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