Artigo

O crime organizado, suas escalas de ação e urgentes estratégias de enfrentamento

O alto número de mortes no Alemão é um trauma que precisa ser rigorosamente investigado e punido em seus excessos. No entanto, a tragédia não pode obscurecer a necessidade de confrontar de frente o poder armado das facções

PRI-0211-OPINI  -  (crédito: maurenilson)
PRI-0211-OPINI - (crédito: maurenilson)

DANIEL A. DE AZEVEDO, professor de geografia política do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB)

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A recente incursão policial no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, que culminou na morte de 121 pessoas, expõe, com brutalidade, uma ferida crônica na segurança pública brasileira. A dimensão da carnificina exige mais do que lamentações e notas de repúdio; impõe uma reflexão profunda sobre as transformações contemporâneas do fenômeno da violência e a urgência de uma nova arquitetura de combate a essa chaga nacional.

É falacioso e perigoso circunscrever o fenômeno do narcotráfico apenas às "favelas do Rio de Janeiro". Por exemplo, no passado, a literatura geográfica tendeu a definir a atuação urbana do narcotráfico como um território em rede, caracterizado por "ilhas" controladas (as favelas), cercadas pelos chamados "bairros do asfalto" (bairros formais). Contudo, o que assistimos hoje é uma perigosa mutação: o território se expandiu para uma dimensão real. Bairros vizinhos, por exemplo, antes vistos como externos à dinâmica da favela, agora convivem com a extorsão de valores mensais de "proteção" e ameaças constantes, evidenciando mudança radical do fenômeno. O grupo criminoso deixou de ser "apenas" traficante para se consolidar como uma organização criminosa de alto poder de coerção.

A definição como "organização criminosa" revela que se trata de um fenômeno multiescalar, extravasa o local e se articula em dimensões nacional e global. A identificação de mortos na operação do Alemão provenientes de outros estados, como Pará, Amazonas e Bahia, não é mera coincidência; é a prova cabal da capilaridade e da natureza inter-regional das facções. Esses grupos não respeitam fronteiras estaduais, utilizando o território nacional como malha de articulação e refúgio.

A partir desta perspectiva, o governo federal emerge com um papel protagonista inadiável. A segurança pública, em sua dimensão de combate ao crime multiescalar, não pode mais ser tratada como um problema meramente estadual. É imperativo que a União assuma a liderança na desarticulação dessas facções em escala nacional, atacando as cadeias de comando, logística e financiamento que conectam territórios diversos do país, especialmente nas regiões de fronteira. Além disso, a dimensão global exige o fortalecimento de parcerias internacionais e, em situações extremas — como a ingovernabilidade do sistema penitenciário, que serve como nexus de comando e recrutamento do crime —, a consideração de auxílio direto de Estados com reconhecida atuação no tema.

Contudo, a compreensão multiescalar nos força a rejeitar soluções simplistas. Assim como é falsa a afirmação que a invasão e as mortes resolveriam o problema, dizer que "apenas a inteligência" é o caminho e que o "combate direto" é ineficaz constitui, por sua vez, uma nova utopia. O crime organizado também é um fenômeno de escala local, com dinâmicas específicas no território que controlam.

O geógrafo Jean Gottmann advertia que o "território é oportunidade". Nesse caso, a organização criminosa, além da venda de drogas articulada global e nacionalmente, sobrevive e prospera pela exploração máxima do território que domina. No cotidiano do cidadão, a organização impõe um "Estado paralelo" predador, que monopoliza a venda de serviços — gás, TV a cabo, internet — a preços abusivos, extraindo lucros da população cativa. Torturas, assassinatos e ameaças são parte do dia a dia. Nesse sentido, a retomada do território se torna condição sine qua non para combater esses grupos. Não é possível derrotar um poder que se enraíza também na exploração local apenas com ações de inteligência em escala nacional ou global. É preciso intervir diretamente nas core areas (áreas centrais), nos "cérebros de fuzil na mão" que impõem a ordem criminosa nas comunidades. Fenômeno multiescalar pressupõe estratégias multiescalares.

Devemos, portanto, ter cautela para não romantizar a situação nem cair na armadilha de utopias. O problema da segurança pública no Brasil, em sua face mais grave, exige o restabelecimento da soberania do Estado sobre seus territórios. Claro e sempre importante reforçar: é responsabilidade do Estado agir com a máxima legalidade, planejamento e inteligência, para minimizar perdas, proteger os inocentes e garantir a lei; porém, retomar território significa, inevitavelmente, conflito e enfrentamento.

O alto número de mortes no Alemão é um trauma que precisa ser rigorosamente investigado e punido em seus excessos. No entanto, a tragédia não pode obscurecer a necessidade de confrontar de frente o poder armado das facções. A inação, sob o pretexto da não violência, apenas condena milhões de brasileiros a viver sob o tacão de um poder criminoso que se expande a cada dia. O narcotráfico é uma guerra em múltiplas frentes. Só uma estratégia de combate igualmente complexa, que atue do local ao global, e que não se furte ao enfrentamento da força onde ela se impõe, poderá trazer alguma esperança ao Brasil. 

 


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postado em 02/11/2025 06:01
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