
Por Eliana Lucena - Especial para o Correio
A menina gostava de criar cidades para as formigas, imaginava que um dia teria um cavalo, salvava os filhotes de pássaros que caíam dos ninhos durante os temporais, cultivava vasinhos de violetas nos degraus de uma escada de pedreiro e à noite curtia o céu. Sabia os nomes das constelações e viajava na imaginação para conhecer outras galáxias.
Ah, essa garota será engenheira, veterinária, ou quem sabe uma professora se destacando em física? A menina só olhava, trepada no pé de jabuticaba ou recebendo o grande presente da avó madrinha: a chave do armário para mergulhar em perfumes, joias, bonecas e o carrossel que tocava música para a bailarina rodopiar. O futuro era algo distante. Não foi boa aluna. Era tímida, distraída e contava as horas para mergulhar no seu mundo de fantasias.
- Crônica: calça desbotada, uma saia ou coisa assim
- Crônica: Sob o céu de nuvens loucas, lembranças de Honestino
- Crônica: Lá se vão 40 anos, e parece que foi ontem!
Mais crescida, ganhou da avó um radinho creme esmaltado. Dormia com ele colado no ouvido, curtindo músicas de todos os gêneros, do rock and roll que dava os seus primeiros sinais, às músicas de Maísa Matarazzo e Dolores Duran. Descobriu que queria ser como Maísa.
Em meio às cobranças sobre qual seria o futuro mais indicado para ela, rebelou-se. Pintou os olhos, fez um cabelo escandaloso com muito laquê, diminuiu a barra da saia do colégio e começou a cantar, frequentando ensaios, bares de músicos e participando de shows. Queria quebrar barreiras, ser livre, mudar o mundo. Hoje, talvez tivesse sido diferente. Mas não foi. Parou de cantar, enterrando um sonho,
e partiu para outras escolhas.
E hoje, as crianças, os adolescentes, o que sonham e projetam para o futuro? Com a globalização, como encaram a sua inserção em um mundo ainda mais marcado pela instabilidade, desigualdade social, pela cobiça, por retrocessos políticos e com poucas ilhas de valorização do ser humano? Muitos preferem se isolar num mundo próprio.
Os questionamentos se multiplicam diante da perplexidade causada pela nova série da Netflix: Adolescência. O enredo acompanha um menino de 13 anos que mata uma colega de escola. Dá foco às influências tóxicas e misóginas às quais os jovens são expostos na internet. As meninas, também vítimas de todo tipo de ataques nas redes, defendem-se como podem. Às vezes, são cruéis e se juntam para dar o troco.
O tema continua gerando polêmica em todo o mundo. O governo britânico já determinou que Adolescência será transmitido gratuitamente nas escolas de ensino médio. O alvo principal são os pais de alunos e professores.
O professor e pesquisador José Machado Pais, do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, falando sobre o assunto discorda de que os jovens não pensam no futuro. "O que difere são suas aspirações que hoje estão moldadas pela imprevisibilidade do futuro. Eles vivem intensamente o presente, em todos os níveis. As tecnologias de informação permitem um conhecimento em rede, mas as mudanças que já estão ocorrendo ainda são pouco exploradas nos processos educativos e formativos dos jovens", afirmou em sua passagem pela Universidade Federal de Caxias do Sul.
Ao mesmo tempo que se preocupa com os efeitos, às vezes, devastadores no comportamento dos jovens, ele aposta nas respostas positivas que se multiplicam nas culturas digitais. Os jovens, cada vez mais, mobilizam-se nas redes sociais, tecem tramas de cumplicidade, envolvem-se em novas redes de comunicação de suporte à participação cívica e política: websites, Facebook, blogs, fóruns, protestos on-line, etc. Os jovens das regiões mais empobrecidas do mundo não estão fora dessa onda.
Segundo relatórios do Banco Mundial, há, em alguns países africanos, mais pessoas com acesso a um celular do que à água corrente, conta bancária ou eletricidade. No Brasil, a internet mobiliza todos os segmentos da sociedade. Os jovens das periferias agora dispõem de canais para difundir as suas ideias e manifestações culturais. As redes também atingem aldeias indígenas e comunidades isoladas em todo o país. Todos querem ter voz.
Estariam construindo novos sonhos? E como poderemos estar juntos nesse processo? Acredito que a escuta e o acolhimento são fundamentais para retomar o diálogo.
A hora é esta!
Eliana Lucena é jornalista