Gastronomia

Sabores que vêm do mar cearense

Do peixe fresco à tapioca na pedra, o Encontro Sesc Povos do Mar coloca a cozinha raiz do Ceará no centro da festa, mostrando tradição, memória afetiva e sabor de casa

Aquavelas celebra a arte pesqueira do Ceará -  (crédito:  ANDErsos)
Aquavelas celebra a arte pesqueira do Ceará - (crédito: ANDErsos)

Jangadas desfilando com velas pintadas à mão, tapiocas fumegando nas pedras e o som do forró embalando a beira-mar de Fortaleza. Foi nesse cenário que o Ceará comemorou, neste mês, a 15ª edição do Encontro Sesc Povos do Mar. Realizado pelo Sistema Fecomércio Ceará, o evento reuniu mais de 200 comunidades espalhadas pelos mais de 500km de litoral do estado. Entre oficinas, celebrações e apresentações que levaram um pouco de nostalgia à cidade, o encontro trouxe à tona a identidade de um povo que resiste e se reinventa entre o mar e a terra. E se a música ecoou na orla, foi na cozinha que as histórias ganharam forma.

Culinária raiz

A Revista conheceu de perto a força da culinária do litoral cearense. "É a cozinha raiz do Ceará que queremos valorizar aqui", explicou Paulo Leitão, consultor do Sesc. Entre as receitas, a buchada de peixe, feita com vísceras de peixes grandes, divide espaço com criações que dialogam com o resto do mundo, como a paella de Icapuí da Mestra Zenaide — uma versão cearense da paella espanhola. 

Ensopados, sururu e mariscadas variadas completam a mesa, com a presença do leite de coco, marca registrada que passeia em várias receitas da culinária litorânea. "Aqui, você prova várias mariscadas e vai ver que cada região trabalha um conjunto de mariscos diferentes", conta Leitão.

O Senac Ceará marca presença apoiando mestres e fortalecendo a cultura alimentar. Sob a coordenação de Vanessa Santos, surge o projeto Grolado, que promove o aproveitamento integral dos alimentos e ressignifica pratos que, por muito tempo, foram marginalizados como "comida de pobre", a exemplo do chibé com cabeça de lagosta, que normalmente só tem a cauda aproveitada.

"São receitas e modos de preparo que não são comerciais e que só conheceríamos morando aqui mesmo. É o que chamamos de raiz. Isso é importante porque, além de salvaguardar a cultura, tem impacto econômico: os próprios mestres percebem que aquilo pode ser vendido, representa quem eles são, e não precisam ter vergonha de mostrar", explica Vanessa.

  • Aquavelas celebra a arte pesqueira do Ceará
    Aquavelas celebra a arte pesqueira do Ceará ANDErsos
  • Mestra Lu (E) e a apresentadora Chef Van (D) juntas no stand do Dicumê
    Mestra Lu (E) e a apresentadora Chef Van (D) juntas no stand do Dicumê ANDErsos
  • Mestra Lucimar, de Jericoacoara, leva para a panela a receita da mãe: a
    Mestra Lucimar, de Jericoacoara, leva para a panela a receita da mãe: a "arraia seca" ANDErsos
  • "Tia Helena" trouxe para o evento a tradição de uma vida dedicada à mandioca ANDErsos
  • Aquavelas celebra a arte pesqueira
    Aquavelas celebra a arte pesqueira ANDErsos
  • A vela de Edmar retrata Iemanjá
    A vela de Edmar retrata Iemanjá ANDErsos
  • Edmar Gonçalves está presente desde a primeira edição do Aquavelas, que foi criado em 2019
    Edmar Gonçalves está presente desde a primeira edição do Aquavelas, que foi criado em 2019 ANDErsos
  • Após longas jornadas no mar, os pescadores chegavam famintos e juntavam o que tinham para preparar uma refeição coletiva, a basquetada
    Após longas jornadas no mar, os pescadores chegavam famintos e juntavam o que tinham para preparar uma refeição coletiva, a basquetada ANDErsos

As mãos que alimentam

Aos 68 anos, Helena Tolentino, da Casa da Tapioca, carinhosamente chamada de tia Helena, trouxe para o evento a tradição de uma vida dedicada à mandioca. Ela começou a raspar o tubérculo com apenas 12 anos na comunidade Estrela, perto de Trairi (CE), uma prática cultural da família e dos vizinhos. "Hoje, meus dedinhos já estão fracos, mas cada tapioca que faço carrega a tradição que aprendi desde os 12", afirma.

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O segredo da tapioca, que provocou longas filas durante todo o evento Povos do Mar, está no modo de preparo "da pedra", que muitos consideram mais saboroso, especialmente com um toque de leite de coco. Para ela, é essencial que as novas gerações conheçam a raiz da maniva, ingrediente que muitas crianças já nem reconhecem. E mesmo conciliando o trabalho com reciclagem, tia Helena busca manter viva a tradição, reconhecida por todos como um verdadeiro patrimônio vivo do evento.

"Eu fazendo (tapioca) pra mim, coloco bastante coco. Fica mais gostoso do que colocar elementos salgados, como a carne. A tapioca com leite de coco por cima é perfeita", explica.

Mestra Lucimar, 54, de Jericoacoara, leva para a panela a receita da mãe: a "raia seca", simples, com muitas verduras e sem creme de leite ou o tradicional leite de coco. Para ela, o prato deve ter bastante vegetais picadinhos para ter o sabor que ela sentia em casa. Costureira de ofício e cozinheira de paixão, passou esse saber para a filha.

No seu terceiro ano no Povos do Mar, ela comemora o sucesso do evento na beira-mar, com a participação de muitos turistas, que disputaram para conseguir o prato servido na mostra culinária do evento, o Dicumê. Ela conta que aprendeu a temperar suas panelas com a mãe. "A raia sempre aparecia nas pescarias. Ela me lembra a liberdade de criar, de trazer novidades, mas sem perder o sabor de sempre, aquele que me faz recordar os pratos da minha mãe", contou com nostalgia.

Arte que navega

Não foi só a cozinha que se abriu no Povos do Mar. As jangadas também tiveram forte protagonismo no Aquavelas, etapa do evento que celebrou a arte pesqueira antes do momento de sentar-se à mesa. As embarcações saíram da enseada do Mucuripe com destino ao Mercado do Peixe da Vila do Mar.

Entre elas, destacam-se as velas pintadas por Edmar, artista presente desde a primeira edição do Aquavelas, criado em 2019. Este ano, ele trouxe cinco velas, sendo que a principal retrata Iemanjá como guerreira, da série Guerreiros do Arco-Íris, com olhar de força e paz. "Eu vivo e sobrevivo da arte, buscando tocar e emocionar quem vê", diz. Suas velas tremulam ao vento de uma manhã chuvosa, cujo Sol só apareceu perto do horário do almoço, que era reservado para a famosa basquetada.

Os jangadeiros e a basquetada

Enquanto as jangadas do Aquavelas atravessavam cerca de sete milhas náuticas, o equivalente a 13 quilômetros, até o Mercado do Peixe da Vila do Mar, Elias Silva, pescador desde os 13 anos, comandava a basquetada, um prato que carrega a essência da vida no mar. Criada pelos pescadores, que ao voltar das longas jornadas chegavam com fome e juntavam o que tinham para uma refeição coletiva, a basquetada é chamada de "raiz" por ser preparada na lenha, como antigamente, em grandes panelas.

"A gente cozinha na lenha, com peixe e legumes, tudo junto, do jeito que sempre foi feito. Tem uns 10 quilos de peixe aqui, e a ideia é servir todo mundo que aparecer", explica Elias. Essa receita nasceu da necessidade e da simplicidade da vida pesqueira: cada um coloca o que tem, do peixe ao siri, e a mistura vira o que Elias chamou de "grande pirão", que fez a alegria de quem enfrentou a fila do evento para provar.

Apesar da fartura que chega à mesa, Fábio da Silva, 42, pescador desde os 7 anos, lembra do lado mais difícil da profissão. Muitos colegas se sentem esquecidos, já que o peixe vendido na feira chega às mãos do consumidor por um valor muito acima do que recebem, devido aos atravessadores. Mesmo assim, ele se orgulha de manter viva a cultura do mar, participando há 15 anos de eventos como o Aquavelas e ajudando a organizar a vida das jangadas.

 *A repórter viajou a Fortaleza a convite do Sistema Fecomércio Ceará 

postado em 25/08/2025 17:14
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