
Desde o momento em que um bebê nasce e o cordão umbilical é cortado, a falta passa a fazer parte da existência humana. A separação física da mãe inaugura uma experiência que acompanhará o sujeito por toda a vida: a de que algo sempre estará ausente — seja o calor do corpo materno, a presença constante de alguém que cuide, a atenção desejada ou um amor idealizado.
Na visão da psicanálise, a falta é tão estruturante que constitui o próprio sujeito. “Somos seres incompletos desde o início”, diz Clarice Siewert, professora de Psicologia da UniSociesc. E essa incompletude não é apenas fisiológica — por nascermos frágeis e dependentes —, mas também afetiva.
A busca por suprir o que nos falta move nossos desejos, direciona nossas ações e molda nossos relacionamentos. “O desejo nasce da falta. Por mais que muitas vezes a pessoa sofra porque não tem o que quer, é justamente essa ausência que a faz se mover”, explica Clarice Siewert. O desejo, na psicanálise, não é fixo nem plenamente realizável e é justamente isso que nos impulsiona a seguir vivendo, buscando, criando.
Intolerância ao vazio na sociedade contemporânea
Se a falta é tão fundamental à experiência humana, por que temos tanta dificuldade em lidar com ela? Parte da resposta está na forma como somos educados — e nos valores que predominam na sociedade atual.
Desde pequenos, muitos de nós somos pouco expostos à frustração. Pais, muitas vezes pressionados por jornadas exaustivas de trabalho e pela culpa, tentam compensar a ausência oferecendo tudo o que podem aos filhos, o tempo todo. “Existe uma dificuldade crescente em frustrar as crianças, o que prejudica o desenvolvimento da tolerância à espera e ao vazio”, observa a psicóloga.
Esse cenário se agrava com a influência das redes sociais e da cultura da produtividade. Vivemos tempos em que o silêncio é desconfortável, o tédio é evitado e tudo precisa ser preenchido: agendas, timelines, corpos, lares. “A gente vai preenchendo tudo com uma ansiedade de que, se não estamos fazendo nada, tem algo errado. Isso gera adoecimentos, muitas vezes físicos, além de rigidez emocional”, afirma Clarice Siewert.
Na tentativa de escapar da angústia, muitas pessoas se perdem em excesso de atividades, consumo e distrações. No entanto, o não enfrentamento da falta pode ter um preço alto: lutos não vividos, dores não expressas, sentimentos não elaborados, tudo aquilo que, se não for falado, o corpo pode somatizar.
O tempo do vazio como espaço de criação
Apesar de toda a dor que a falta pode causar, ela também tem um lado fértil e criativo. “Para criar o novo, a gente precisa se esvaziar um pouco”, diz Clarice Siewert. A contemplação, o tédio e os momentos de pausa — tão raros nos dias atuais — são essenciais para a elaboração de ideias, sentimentos e projetos. O tempo subjetivo, mais lento do que o ritmo acelerado da sociedade, é o terreno onde nasce a criatividade. “A criação artística, por exemplo, está fora da lógica do mercado. Ela precisa de tempo, de escuta, de silêncio”, conta a especialista.
Lidar com a falta, portanto, envolve também uma mudança de perspectiva: sair do modo reativo e aceitar o vazio como parte constitutiva da existência. Isso exige disposição para tolerar a angústia, suportar momentos de não saber, de não ter, de não ser. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, esses espaços não significam fracasso ou improdutividade — são, na verdade, oportunidades de reinvenção.

O luto e as perdas que atravessam a vida
Entre todas as formas de falta, o luto é talvez a mais universal. Mais cedo ou mais tarde, todos somos atravessados por perdas — de pessoas, relações, empregos, fases da vida. Elaborar essas perdas é um processo essencial para manter o equilíbrio emocional. Clarice Siewert destaca que o luto não se limita à morte de alguém querido: ele pode estar presente na transição de carreiras, na maternidade, na mudança de estilo de vida.
O problema surge quando o luto não é simbolizado, quando não conseguimos dar um nome ao que perdemos ou encontrar meios de expressar nossa dor. “Freud fala sobre isso em ‘Luto e Melancolia’. No luto, sabemos o que perdemos e podemos chorar, sofrer, reorganizar. Na melancolia, já não sabemos mais o que foi perdido, e o sofrimento se instala de forma crônica, afetando a vida como um todo”, explica a professora.
Sinais de alerta para esse sofrimento persistente incluem o afastamento das atividades que antes davam prazer, o isolamento social e a perda do sentido da vida. Nesses casos, buscar ajuda especializada pode ser essencial. A psicoterapia, segundo a especialista, é um espaço potente para a elaboração da falta. “É onde a pessoa pode entender o que lhe falta e como ela lida com isso, repensar suas fantasias, suas ideias de mundo”, afirma.
Aprender a conviver com o que falta
Não existe uma fórmula mágica para aprender a lidar com a falta. O que existe é um processo contínuo de elaboração, de reconhecimento da dor e de aceitação de que nem tudo pode — ou precisa — ser preenchido. “Não sei se ‘ensinar’ é a palavra, mas é possível, sim, aprender a lidar com isso ao longo da vida”, afirma Clarice Siewert. A psicoterapia, a arte, as conversas significativas e até o tempo de solitude são ferramentas que ajudam nessa travessia.
Conviver com a falta não significa se conformar com a dor, mas compreender que ela faz parte da condição humana. Ao aceitar essa verdade, abrimos espaço para uma existência mais autêntica, menos baseada em compensações e mais enraizada no desejo. Porque, como nos ensina a psicanálise, é o que nos falta que nos movimenta. E é no movimento, e não na completude, que reside o sentido da vida.
Por Genara Rigotti