Saúde mental

Joguinhos eletrônicos anti-pensamentos negativos

Aplicativo criado para tratar quem sofre de depressão moderada, apresenta resultados positivos e se alia à psicologia nas terapias tradicionais. A experiência foi testada por 117 pacientes

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Pela proposta dos games, o jogador se concentra e passa a ter a sensação de controle e de satisfação, reduzindo os sintomas depressivos -  (crédito: Unsplash)
Pela proposta dos games, o jogador se concentra e passa a ter a sensação de controle e de satisfação, reduzindo os sintomas depressivos - (crédito: Unsplash)
postado em 27/01/2025 06:00 / atualizado em 27/01/2025 06:27

Um aplicativo gamificado, o MoodVille, apresenta resultados positivos na redução dos "pensamentos ruminantes"—  ideias negativas que se repetem de forma contínua e acabam prejudicando a saúde mental — , segundo um estudo recém-publicado no Journal of Medical Internet Research. De acordo com a pesquisa, reagiram melhor aos efeitos dos joguinhos as pessoas com diagnóstico de depressão moderada. A plataforma, desenvolvida com base no conceito de transformar o pensamento por meio da facilitação, foi monitorado e randomizado por oito semanas. A pesquisa reúne cientistas da Universidade de Bar-Ilan, em Israel, e do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos.

Participaram do estudo 117 pessoas, divididas em dois grupos: um que utilizou o aplicativo por oito semanas e outro que aguardou na lista de espera. A intervenção combinou mecânicas de jogos com objetivos terapêuticos, utilizando cinco minigames projetados para estimular flexibilidade cognitiva, criatividade, rapidez de pensamento e associações amplas. Os participantes diagnosticados com depressão moderada foram separados em um único grupo com o fim de utilizar o aplicativo por 15 minutos diários, quatro vezes por semana. Após oito semanas, o grupo apresentou uma redução de sintomas, mostrando uma resposta positiva durante o tratamento proposto.

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Os participantes com diagnóstico com depressão moderada obtiveram a adesão mais elevada entre os 117 avaliados, com mais de 90% indicando pela continuidade do uso do aplicativo, mesmo após o término oficial da pesquisa. A inclusão de mecânicas de jogos, como recompensas e metas diárias, foi essencial para manter o engajamento dos usuários. Para eles, a experiência  foi "divertida e motivadora". Pelo menos 47% relataram que vão seguir com o uso do aplicativo, semanalmente. A gamificação, cada vez mais utilizada em terapias digitais, mostrou-se um fator determinante no sucesso do aplicativo.

Tratamentos tradicionais 

Os tratamentos tradicionais, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), focam na mudança do conteúdo dos pensamentos negativos. O MoodVille inova ao alterar a estrutura dos padrões de pensamento. A abordagem visa organizar e desenvolver o pensamento cuja sigla em inglês é FTP e significa ter metas claras, compreender e avaliar a perspectiva de tempo futuro, aspectos explorados pelo aplicativo, complementa as terapias existentes e oferece uma alternativa viável para quem busca opções não convencionais.

"Após demonstrar em laboratório o efeito impressionante de facilitar a progressão do pensamento no humor, agora revelamos que implementar essa abordagem baseada em neurociência em um aplicativo digital pode fornecer um caminho mais viável para o alívio dos sintomas de depressão", conclui Moshe Bar, professor que coordenou os estudos em Israel. Com resultados positivos e aceitação entre os participantes, o estudo representa um avanço na aplicação de tecnologias digitais no tratamento de transtornos mentais, mostrando que inovação e ciência podem caminhar juntas para transformar vidas.

Com o uso de elementos lúdicos, essas tecnologias fortalecem a inteligência emocional, estimulam a criatividade e promovem a resiliência, criando um ambiente seguro para o crescimento pessoal. Bar entende que o pensamento divergente e o devaneio contribuem para melhorar o humor e estimular a criatividade. O pesquisador da área de desenvolvimento humano, Rodrigo de Aquino acredita que a gamificação ajuda a criar uma forma mais ampla e flexível de pensar, melhorando o humor e o estado interior do usuário.

"Esse processo está alinhado com a teoria do 'flow', de Mihaly Csikszentmihalyi, que sugere que atividades desafiadoras e envolventes favorecem o bem-estar emocional", ressaltou Fonseca, referindo-se à teoria que descreve um estado mental em que a pessoa se sente imersa numa atividade e tem senso de controle e satisfação. Para ele, é preciso verificar, por exemplo, a eficácia do estudo em variados grupos étnicos e socioeconômicos, além de analisar mais os impactos do aplicativo quando combinado a tratamentos tradicionais.

Doutor e pesquisador em psicoterapias, Curt Hemanny disse que é necessário avaliar os resultados obtidos via aplicativo gamificado e a terapia realizada por meio do sistema. "São abordagens completamente distintas. A preferência também é um ponto crítico. Quais pessoas preferem o uso de tecnologias em vez de um atendimento profissional face a face?." Para ele, é preciso evitar a confusão entre um aplicativo e um tratamento eficaz, fazendo a "distinção entre os tipos de intervenção que essas ferramentas oferecem".

Os pesquisadores ressaltaram ser necessário explorar como cada minigame impacta nos sintomas depressivos, permitindo personalizações futuras. O estudo destacou que as mulheres podem obter maiores benefícios da intervenção, especialmente com o aumento da idade. Essa observação está alinhada com pesquisas sobre o impacto positivo de jogos digitais em habilidades cognitivas, sociais e físicas, especialmente entre jogadoras. A explicação estaria na maior disposição feminina para terapias.

 

Palavra de especialista // Ferramentas auxiliares

Não há evidências de que esses aplicativos produzam remissão, que seria o equivalente à cura, embora não utilizemos esse termo para transtornos mentais devido à alta probabilidade de recorrência de novos episódios, como na depressão. No entanto, aplicativos digitais já são e continuarão sendo ferramentas auxiliares em tratamentos sistematizados, que realmente tratam, como medicamentos e psicoterapias. Esses aplicativos serão cada vez mais integrados como coadjuvantes no processo terapêutico. Aqueles que são de psicoterapia, por exemplo, têm potencial para serem utilizados, mas ainda não sabemos se serão considerados terapias de primeira escolha. Atualmente, os tratamentos principais utilizam antidepressivos e psicoterapias, tanto para a depressão quanto para transtornos de ansiedade. (Os aplicativos) não são tratamentos, mas podem ser ferramentas auxiliares interessantes, principalmente como intervenções de suporte complementar. Parecem benéficos e temos evidências. Esse campo ainda é emergente. Precisamos de mais estudos para entender exatamente quais aplicativos e de que forma e com quem eles podem ser úteis.

Curt Hemanny é psicólogo clínico e pesquisador com experiência  em psicoterapias para o tratamento da depressão, nas Faculdades Integradas Padrão (FIP-Guanambi) e na Faculdade Focus na Pós-Graduação em Psicopatologia

 

Duas perguntas para // Debora Valenzi psicóloga clínica e pós-graduanda em saúde mental, saúde da mulher e Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) 

Aplicativos gamificados poderiam ser usados também para tratar outros transtornos mentais, como ansiedade e Transtornos de Estresse Pós-traumático (TEPT)? Por quê?

A TCC é uma abordagem flexível e pode ser adaptada a diferentes necessidades e contextos, oferecendo uma maneira de trabalhar com a ansiedade e o estresse pós-traumático de forma gradual e controlada. Com as novas fases de desenvolvimento, vamos adquirindo novas ferramentas e habilidades emocionais para lidar com o sofrimento. A terapia convencional ou a gamificação, como instrumento auxiliar, só terão pleno sucesso conforme a dedicação e disciplina do paciente. O quanto ele está disposto a se entregar ao processo terapêutico e fazer uso de tudo o que tem ao seu alcance. Esses aplicativos podem ser utilizados em uma variedade de condições psicológicas, incluindo a ansiedade e o TEPT, a bipolaridade, borderline, etc., já que eles ajudam os usuários a lidarem com pensamentos intrusivos e a regular as emoções de maneira saudável. Nós, psicólogos, teríamos um ganho enorme se ferramentas práticas e intuitivas chegassem em nossas mãos. Mulheres com TEPT ou ansiedade, muitas vezes devido a experiências traumáticas ou pressões sociais, podem se beneficiar de intervenções gamificadas. Esses aplicativos criam um espaço seguro para explorar e ressignificar os traumas.

Quais são os principais desafios na adoção de tecnologias como essas em contextos clínicos e culturais diversificados?

O sucesso de qualquer intervenção depende da identificação do paciente com a ferramenta. Para que uma tecnologia seja eficaz, ela precisa se alinhar às crenças e aos valores culturais do paciente. Fatores como a cultura e o ambiente social desempenham um papel importante na aceitação de novas tecnologias. A adesão pode ser mais difícil para pessoas que não estão familiarizadas ou que desconfiam de ferramentas digitais, pessoas com deficiências, ou que têm desconfiança em relação a tratamentos não presenciais , pessoas em vulnerabilidade social ou periféricas, não teriam acesso a esse tipo de oportunidade. Para as mulheres, o estigma associado ao uso de tecnologia para a saúde mental também pode ser um desafio ainda maior, especialmente em culturas mais conservadoras, relacionamentos conflituosos ou mães que vivem sem rede de apoio. No Brasil, o acesso à internet, tecnologia ou a aparelhos celulares smartphones ainda é limitado, como em áreas rurais ou mais carentes, o que torna a ideia do jogo acessível apenas para uma parte da população. Dessa forma, o jogo se tornaria elitizado, mostrando o grande vácuo cultural e social que vivemos, o que acaba propiciando em muitos casos o aumento da depressão.

 

 

 

 

 

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