IA desvenda distúrbios na medicina através de recursos em vídeo

Cientistas desenvolvem uma ferramenta simples, com apoio de smartphone, capaz de identificar por meio dos movimentos involuntários dos olhos se o paciente tem distúrbios neurológicos. Mas especialistas advertem: nada substitui o exame ambulatorial e médico

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Aparelho sendo testado para de rastreamento ocular e detecção 
de alterações -  (crédito: Universidade Atlântica da Flórida)
Aparelho sendo testado para de rastreamento ocular e detecção de alterações - (crédito: Universidade Atlântica da Flórida)
postado em 30/06/2025 06:00

Na medicina, sobretudo na análise de imagens, a inteligência artificial (IA) ganha protagonismo. Avanços recentes mostram que, além de apoiar decisões terapêuticas, a ferramenta ajuda a detectar com precisão condições complexas, como distúrbios vestibulares — relacionados ao equilíbrio e orientação espacial. O diagnóstico de nistagmo — movimento involuntário dos olhos — pode ser feito, por exemplo, com o envio de vídeos por smartphones.

Para chegar a esse nível de precisão, pesquisadores da Florida Atlantic University (FAU) aperfeiçoaram os modelos tradicionais de IA baseados em dados estáticos e limitados à aplicabilidade em tempo real.

Determinadas alterações identificadas estão associadas a doenças do sistema vestibular e neurológico, embora técnicas como a videonistagmografia (VNG) sejam consideradas padrão-ouro, o custo é bastante elevado, acima de US$ 100 mil, e há necessidade de equipamentos incrementados que tornam o exame inacessível em alguns locais.

Alternativa

O modelo desenvolvido pelos pesquisadores da FAU oferece uma alternativa de baixo custo, portátil e integrada à telemedicina, utilizando a câmera de um smartphone e processamento em nuvem.

"Nosso modelo de IA oferece uma ferramenta promissora que pode complementar parcialmente - ou, em alguns casos, substituir - métodos convencionais de diagnóstico, especialmente em ambientes de telessaúde onde o acesso a cuidados especializados é limitado", diz o professor Ali Danesh, principal autor do estudo e pesquisador da FAU.

A ferramenta analisa 468 pontos faciais para rastrear, em tempo real, os movimentos oculares e identificar características específicas do nistagmo, como a velocidade da fase lenta. Os dados são transformados em gráficos e relatórios acessíveis a médicos e fonoaudiólogos, facilitando o acompanhamento a distância.

No estudo piloto com 20 participantes, os resultados da IA coincidiram com os obtidos por dispositivos tradicionais.

Segundo Emanuelle Roberta da Silva Aquino, neurologista do Hospital Sírio-Libanês, a aplicação de modelos de IA pode avançar. "Acredito que, do ponto de vista de topografia da lesão —  ou seja, para indicar o local do sistema nervoso central afetado — a análise do nistagmo pode, sim, ajudar. Ele reflete o local da lesão, mas não necessariamente a causa. Um nistagmo cerebelar, por exemplo, pode ser provocado por AVC, esclerose múltipla ou outras síndromes, mas a informação pura do nistagmo não discrimina a etiologia", explica.

"A clínica é soberana. Existem nistagmos fisiológicos ou que não têm relação direta com a queixa do paciente. O neurologista experiente, aquele especializado em distúrbios vestibulares, utiliza diversas manobras para sensibilizar o exame e buscar sinais como o nistagmo. Não é apenas observar o olho, mas provocar respostas por meio de estímulos como vibração craniana ou chacoalhar da cabeça", esclarece a médica.

Limitações

Mesmo reconhecendo as limitações atuais da IA, Aquino vê potencial no uso da tecnologia como apoio diagnóstico nas consultas ambulatoriais: "O Brasil tem dimensões continentais, e há regiões em que não há neurologistas disponíveis, muito menos especialistas em equilíbrio. Nesses locais, o uso da IA para captar e analisar o nistagmo pode ser crucial para um diagnóstico precoce, sem que o paciente precise se deslocar por longas distâncias."

A especialista reforça a importância da iniciativa para além do ambiente hospitalar. "Acho que essa tecnologia tem impacto não só na emergência, mas também em consultas ambulatoriais. Pode reduzir custos para o sistema público e privado, evitar deslocamentos desnecessários e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, principalmente se for capaz de encurtar o tempo até o diagnóstico", defende.

O sistema da FAU foi treinado com mais de 15 mil quadros de vídeo, utilizando uma divisão de 70% para treinamento, 20% para teste e 10% para validação. O modelo tem mecanismos para filtrar ruídos e movimentos oculares irrelevantes, como o piscar dos olhos.

*Estagiária sob supervisão de Renata Giraldi

 

 

Tatiana Guthierre, otorrinolaringologista do Hospital Sírio-Libanês

De que forma a inteligência artificial pode contribuir no diagnóstico de distúrbios vestibulares, como VPPB, neuronite vestibular e labirintite, considerando o uso de vídeo e smartphones?

A inteligência artificial pode ser uma ferramenta útil no diagnóstico de distúrbios vestibulares periféricos, especialmente por meio da análise de vídeos que captam nistagmo. Mas é importante destacar que a detecção do nistagmo por si só não basta para estabelecer o diagnóstico. O que determina a precisão diagnóstica é a combinação de dados clínicos, histórico do paciente, exames laboratoriais, avaliação neurológica e, sim, a observação do nistagmo, mas em contexto apropriado. 

Apenas o uso dessa ferramenta para o diagnóstico de nistagmo é suficiente?

Mesmo sem IA, a gravação de vídeos pode ajudar bastante, desde que feita corretamente e interpretada por um otorrinolaringologista com formação em otoneurologia. A questão central está na realização adequada das manobras diagnósticas — como Dix-Hallpike ou rotação cefálica — que requerem não só conhecimento técnico, mas também experiência prática. Isso exige o uso de equipamentos como óculos de vídeo-nistagmografia e um operador treinado. Portanto, a IA pode auxiliar como suporte, principalmente em contextos de telemedicina e interconsulta, permitindo que um médico generalista em uma região sem especialista grave os testes e envie para um perito analisar. Ainda assim, será necessário garantir que o vídeo tenha sido feito com a técnica correta, o que exige uma curva de aprendizado e um treinamento rigoroso para o profissional da ponta. O paciente sozinho, tentando fazer o teste com um celular em casa, dificilmente conseguirá gerar um material confiável, além de correr o risco de passar mal durante o processo.

A utilização do sistema em substituição ou complementação de exames tradicionais, como a VNG, é uma alternativa para o SUS, por exemplo?

A vídeo-nistagmografia (VNG) é frequentemente chamada de padrão-ouro, mas, na verdade, é o padrão para detecção do nistagmo. O diagnóstico vestibular como um todo vai muito além disso — envolve uma análise global do paciente. A inteligência artificial, nesse contexto, tem potencial para complementar a avaliação, mas não para substituir exames clínicos e laboratoriais. Em um cenário ideal, a IA poderia auxiliar profissionais não especialistas no registro de dados objetivos e compartilhá-los com especialistas por meio da telemedicina. Essa estratégia pode ser útil em regiões mais remotas, onde não há acesso a um otorrinolaringologista.

Quais são as limitações do sistema apresentado no estudo e a aplicabilidade no Brasil?

Há uma série de limitações práticas, especialmente no SUS: a carência de estrutura básica (consultórios sem mesa e iluminação apropriadas) torna difícil imaginar a aplicação de tecnologias mais avançadas como a IA de forma rotineira. O uso de IA para acompanhamento de pacientes com tontura e distúrbios vestibulares crônicos pode oferecer benefícios, principalmente em termos de documentação objetiva da evolução clínica e resposta à terapia, como a reabilitação vestibular. Em teoria, dispositivos como óculos com sensores ou câmeras poderiam ser usados para registrar episódios e enviar os dados ao médico para análise. Mas há limitações técnicas, clínicas e éticas importantes. Muitos desses dispositivos ainda não estão disponíveis no Brasil.(RB) 

Inovações vestíveis

A criação da ferramenta envolveu o desenvolvimento de um headset vestível para detecção contínua de nistagmo. O sistema consiste em um dispositivo montado na cabeça que inclui realidade virtual (RV) ou realidade montada (RA), lentes e um mecanismo para prendê-los à cabeça. Apesar de estar em fase de testes em laboratório, com resultados promissores, os pesquisadores reconhecem desafios a serem superados, como o ruído dos sensores.

"O potencial de transformação é enorme", avalia Harshal Sanghvi, coautor do estudo. "Nossa plataforma pode ser aplicada em clínicas, prontos-socorros e até em casa, oferecendo diagnósticos não invasivos em tempo real."

A pesquisa é fruto de uma colaboração multidisciplinar entre a Florida Atlantic University (FAU) e instituições como o Marcus Neuroscience Institute, o Baptist Health, o Hospital Regional de Boca Raton, o Loma Linda Medical Center e o Broward Health North. O objetivo agora é ampliar os testes, ajustar o algoritmo para diferentes populações e buscar a aprovação da FDA.

"À medida que a telemedicina se consolida, ferramentas de IA como esta podem facilitar o diagnóstico precoce, acelerar encaminhamentos e aliviar a sobrecarga dos especialistas. Em última instância, são soluções que aproximam o cuidado de qualidade das populações mais vulneráveis", ressalta o professor Ali Danesh, pesquisador da FAU. (RB)

Alerta e recomendações


Especialistas advertem que, embora a ferramenta seja muito interessante em termos de avanços, no Brasil há limitações econômicas, sociais e culturais que dificultam o acesso. A rede privada pode incorporar o sistema facilmente, já a pública, não tem a mesma facilidade. Mesmo que o software esteja disponível em um smartphone, a forma correta de realizar os testes continua dependendo da intervenção de um profissional treinado. Os médicos consultados pelo Correio alertaram que há riscos clínicos reais, pois algumas manobras de reposição ou provocação de nistagmo — como a de Epley ou Dix-Hallpike — podem não ser seguras para todos os pacientes, pessoas com hipertensão grave, problemas cardíacos, ou histórico de AVC podem ter complicações sérias se realizarem esses movimentos sozinhas em casa. Por isso, não é ético nem seguro recomendar que o paciente faça testes sozinho sem orientação médica. Na prática, eles sugerem que todo e qualquer procedimento seja supervisionado por um especialista. A IA pode ser uma aliada poderosa para melhorar o acesso e agilizar o processo diagnóstico, mas jamais deve ser utilizada como substituta do olhar clínico e da responsabilidade médica.(RB)

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