Medicina diagnóstica

Com IA, diagnóstico de demência fica mais preciso

Desenvolvida nos Estados Unidos, ferramenta baseada em inteligência artificial gera mapas digitais para identificar áreas do cérebro afetadas pela neurodegeneração, indicando nove condições distintas

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nove tipos de demencia  -  (crédito: Mayo Clinic )
nove tipos de demencia - (crédito: Mayo Clinic )
postado em 25/08/2025 06:00 / atualizado em 25/08/2025 08:25

A medicina diagnóstica ganha uma nova ferramenta que promete identificar com mais precisão doenças neurodegenerativas não detectadas. Pesquisadores da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, utilizaram inteligência artificial (IA) para diagnosticar a partir de um único exame de imagem cerebral, com bastante exatidão, nove tipos de demência. O sistema, chamado StateViewer, obteve sucesso em 88% dos casos avaliados, de acordo com estudo publicado na revista Neurology, da Academia Americana de Neurologia.

 

Para a pesquisa, os cientistas analisaram exames de 3.671 homens e mulheres cuja média de idade era de 68 anos, alguns saudáveis e outros diagnosticados com algum tipo de perda cognitiva severa. Os participantes de grupos de doenças foram recrutados da população de pacientes clínicos, enquanto os demais saudáveis vieram de um estudo populacional. 

Com base em dados extraídos de exames FDG-PET (tomografia por emissão de pósitrons com fluordesoxiglicose), técnica disponível em hospitais e clínicas, para mapear o consumo de glicose no cérebro — um indicador direto da atividade cerebral funcional. A IA, então, compara os resultados do paciente com um extenso banco de dados que inclui mais de 3.600 exames de pessoas com e sem comprometimento cognitivo, identificando padrões característicos de nove diferentes formas de demência, incluindo Alzheimer, demência por corpos de Lewy e demência frontotemporal.

Diferencial

O diferencial da ferramenta está em sua capacidade de acelerar o processo diagnóstico e aumentar a acurácia da interpretação médica. De acordo com os resultados do estudo, profissionais de saúde conseguiram analisar os exames quase duas vezes. Além disso, o sistema gera mapas cerebrais coloridos que destacam regiões afetadas, tornando o laudo visualmente acessível até mesmo para médicos que não possuem especialização em neurologia.

O neurologista David Jones, diretor do Programa de Inteligência Artificial em Neurologia da Mayo Clinic e líder do projeto, afirmou que o objetivo é proporcionar diagnósticos mais rápidos e confiáveis, especialmente em locais onde o acesso a especialistas é limitado. "Cada paciente representa um universo cerebral complexo. O StateViewer é um reflexo do nosso empenho em fornecer respostas mais claras e orientar o tratamento de forma mais personalizada e eficaz."

O cientista Leland Barnard, responsável pelo desenvolvimento técnico do sistema de IA e integrante da equipe de pesquisadores da Mayo Clinic, destacou os impactos com a inovação. "Nunca perdemos de vista o fato de que cada imagem analisada representa uma pessoa em busca de respostas. Ver a IA gerar insights clínicos relevantes em tempo real é uma demonstração poderosa do potencial do aprendizado de máquina na prática médica."

Com a ferramenta, é possível compreender padrões metabólicos cerebrais em representações visuais, pois oferece suporte para profissionais de saúde, que não atuam diretamente na neurologia, inclusive ajudando no atendimento primário, segundo os cientistas. A proposta é possibilitar intervenções mais eficazes em estágios iniciais da doença momento crucial para a eficácia dos tratamentos atualmente disponíveis.

Alerta

A demência por corpos de Lewy (DCL), por exemplo, afeta áreas cerebrais ligadas à atenção e ao controle motor, enquanto a demência frontotemporal compromete regiões associadas à linguagem e ao comportamento. Já o Alzheimer impacta principalmente zonas relacionadas à memória e ao raciocínio. O software identifica essas características, colocando-as em forma de mapas cerebrais com codificação por cores, facilitando a correlação entre sintomas clínicos e os achados de imagem.

Para a equipe de pesquisadores, essa nova ferramenta poderá ser integrada em larga escala ao sistema de saúde, democratizando o acesso a diagnósticos de alta qualidade mesmo em regiões com poucos recursos. Com isso, médicos poderão tomar decisões mais embasadas, encaminhar pacientes com mais agilidade para tratamento adequado e, sobretudo, oferecer mais esperança para milhões de famílias ao redor do mundo que convivem com a incerteza de um diagnóstico tardio.

Para Eduardo Chaves, médico neurologista da Amplexus saúde especializada, que não participou do estudo, as perspectivas são promissoras. "Grande parte dos algoritmos de inteligência artificial é treinada com dados de populações que não representam toda a diversidade brasileira, especialmente em relação à escolaridade, etnia, linguagem e perfil clínico", afirmou. "Isso pode causar erros em diagnósticos, principalmente em pacientes com características comuns na prática médica, como baixa escolaridade, sintomas atípicos ou quadros mistos."

Segundo neurologista, é importante utilizar a inteligência artificial como aliada na medicina diagnóstica. "Essa ferramenta pode ser uma aliada importante, na triagem e nos atendimentos iniciais, auxiliando médicos não especialistas, acelerando diagnósticos e ampliando o acesso ao conhecimento. Reconhece padrões técnicos, mas não interpreta contexto. Não sabe se o paciente tem histórico de AVC, está em depressão, é analfabeto ou que a família está emocionalmente fragilizada. Fatores essenciais na tomada de decisão clínica." Porém, Chaves alertou: nada substitui o conhecimento humano. "No entanto, a IA não substitui o papel do neurologista. Ela não é capaz de criar vínculo, ouvir com empatia ou tomar decisões éticas sobre comunicar um diagnóstico difícil. Diagnosticar Alzheimer ou outras demências vai além de identificar a doença; envolve acompanhar o sofrimento, planejar os cuidados e apoiar a família ao longo de uma trajetória desafiadora. Por isso, sim, a inteligência artificial será usada — mas apenas como uma ferramenta, sobretudo, no cuidado com demências, a medicina continua sendo feita de pessoas cuidando de pessoas."

*Estagiária sob supervisão de Renata Giraldi

 

Felipe Borelli, médico neurologista da Amplexus saúde especializada

Mesmo com exames de imagem avançados, por que ainda é tão difícil distinguir Alzheimer de outras demências como a frontotemporal
ou por corpos de Lewy?

A demência é uma entidade clínica multifatorial, sendo uma via comum de várias neuropatologias. Todos os critérios diagnósticos envolvem graus de possibilidade, na qual o diagnóstico definitivo só pode ser feito pela avaliação anatômica do cérebro em pós morte.  Embora Alzheimer seja a causa mais comum, com o estudo de bancos de cérebros de pacientes dementados em até 70% dos casos que o diagnóstico era de Alzheimer, outras doenças como lewy e demência vascular estavam presentes.

Com ferramentas como o StateViewer acertando o diagnóstico em até 88% dos casos, o que ainda limita o uso clínico amplo dessa tecnologia na prática diária?

As alterações em exames de imagem, mesmo no Pet cerebral podem não ser conclusivas ou demorarem a aparecer, sendo o quadro clínico e o exame cognitivo a principal pista para o médico neurologista conduzir o caso. E na maioria dos casos é necessário o acompanhamento e avaliação temporal dos sinais e sintomas para definir melhor o tipo de demência.

Na sua visão, a inteligência
artificial deve ser vista como
uma aliada do neurologista ou há risco de ela reduzir o papel do especialista no diagnóstico?

A inteligência artificial é uma ferramenta extremamente útil no processamento de informações em larga escala de forma rápida e assertiva. Acredito que será uma ferramenta de triagem para auxiliar na detecção precoce de déficits cognitivos e estímulo de mudanças dos hábitos de vida, que são a principal ferramenta para ajudar a reduzir os futuros casos de demência, visto que não há tratamentos medicamentosos modificador de doença que seja capaz de reverter ou estabilizar a doença, independente da causa da demência. E com certeza em casos na qual há dúvida diagnóstica a IA pode participar e ajudar a dar um direcionamento para o caso. (RB)

55 milhões de casos

O diagnóstico precoce é essencial para otimizar o tratamento de condições como Alzheimer, que é atualmente uma das formas mais frequentes de demência. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de 55 milhões de pessoas convivem com algum tipo de demência no planeta, e quase 10 milhões de novos casos surgem anualmente. A complexidade do cérebro humano e a sobreposição de sintomas entre diferentes doenças dificultam o reconhecimento preciso, mesmo com uma bateria extensa de testes que incluem avaliações cognitivas, exames laboratoriais, imagens neurológicas e consultas com especialistas.

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    nove tipos de demencia Foto: Mayo Clinic
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