Tintas domésticas que fazem as paredes mudarem de cor, protetores solares de tons adaptáveis, sensores que captam diferentes tipos de luz. Para fabricar produtos como esses, os cientistas têm apostado em imitar algo que já existe na natureza, especificamente nos oceanos: a camuflagem de polvos e outros moluscos. Tais animais possuem no organismo a xantomatina, um pigmento capaz de alterar sua coloração e reproduzir os tons do ambiente no qual está.
Usar essa substância em produtos que variam de cor era um desafio, pois a produção artificial do corante em laboratório não era rentável — não há reação química capaz de gerar quantidades relevantes de xantomatina —, e a retirada dela dos animais é considerada ineficiente por especialistas. Agora, uma pesquisa da Universidade da Califórnia, em San Diego, resultou em uma técnica que usa bactérias geneticamente modificadas para produzir o pigmento, de forma orgânica e em grande volume.
A xantomatina é gerada como resultado do próprio metabolismo bacteriano, e o processo pode render até mil vezes mais colorante do que a fabricação sintética convencional. A pesquisa, publicada na importante revista Nature — Biotechnology no último dia 3 de novembro, mostrou que o método cria de um a três gramas do produto concentrado por litro de líquido resultante da reação biológica, enquanto os modelos atuais entregam apenas cinco miligramas a cada litro. "Estamos muito esperançosos que a técnica possa ser muito usada na indústria, porque os resultados foram ótimos", conta ao Correio a pesquisadora Leah Bushin, líder do estudo.
Bactérias produtoras
A pesquisa descobriu que há genes capazes de fazer bactérias produzirem xantomatina durante seu metabolismo. Porém não bastava inserir esses genes nas espécies, pois há uma tendência de os microrganismos resistirem a gerar substâncias "estranhas" e inúteis ao corpo deles, para não desperdiçarem energia. O ponto mais importante do estudo está justamente nessa etapa: os cientistas associaram a sobrevivência da bactéria à produção do corante.
Eles criaram, por meio de várias alterações genéticas, células bacterianas "doentes", com desnutrição. Os microrganismos passaram, então, a gerar ácido fórmico, um composto importante para o crescimento celular. No processo, inevitavelmente há produção da xantomatina, como um dos produtos resultantes desse metabolismo.
Como as bactérias são forçadas a produzir ácido fórmico para sobreviverem, elas param de oferecer resistência a gerar também o pigmento de camuflagem. O processo, chamado tecnicamente de "biossíntese acoplada ao crescimento", é relativamente rápido, e o corante é "fabricado" pelos microrganismos em grande quantidade de um dia para o outro.
Viabilidade
Cultivar placas bacterianas é algo relativamente fácil e comum em laboratórios do ramo. No caso do uso delas para produção de xantomatina, o processo não exige tecnologias muito mais sofisticadas que as tradicionais. A manipulação genética, segundo a pesquisadora Leah Bushin, é simples e viável de ser reproduzida. "Basicamente, removemos alguns genes e introduzimos outros, para elevar ao máximo a capacidade produtora dos microrganismos", explica ela.
Além disso, são necessários poucos materiais para alimentar as bactérias, e elas conseguem gerar o ácido fórmico com pigmento a partir apenas de um único nutriente. A líder da pesquisa acredita que novas substâncias poderão ser fabricadas usando a mesma ideia aplicada com a xantomatina. "Diferentes moléculas podem resultar desse mesmo tipo de metabolismo, então as técnicas genéticas que usamos podem ajudar a criar várias coisas", diz Leah.
Sustentável e comercial
De acordo com os autores da pesquisa, todo o processo de fabricação do colorante é ecológico, pois não gera resíduos poluentes nem usa técnicas invasivas de produção. Os cientistas americanos destacam que reações naturais, como essa das bactérias, podem servir de inspiração para que as indústrias dependam menos de produtos sintéticos para suas matérias-primas.
Segundo a Universidade da Califórnia, várias empresas de cosméticos e de sensores fotossensíveis demonstraram interesse na tecnologia. E até o Departamento de Guerra dos Estados Unidos manifestou desejo de usar o pigmento, aproveitando, nesse caso, o potencial de camuflagem natural da substância.
Saiba Mais
Palavra de especialista
Maria Clara Chagas, bióloga e mestre em ecologia
“Essa técnica do estudo mostra como a biotecnologia, a engenharia biogenética e novos processos científicos são importantes para otimizar a produção de compostos essenciais pro nosso dia-a-dia. Isso faz com que se tenha o menor custo possível, tanto financeiro, pois se economiza materiais e equipamentos, quanto biológico, visto que o processo é sustentável.
O sistema de mudança de cor dos polvos é extremamente avançado, com várias especificidades desses animais. É muito interessante que com tecnologia a gente consiga reproduzir coisas que já na natureza são tão complexas. Essa técnica com o pigmento me fez lembrar muito da fabricação de insulina para humanos.
Antes ela era retirada dos pâncreas de porcos, algo que exigia grandes fábricas e muito mais custo para essa exploração. Hoje em dia a técnica é semelhante, com bactérias geneticamente modificadas que geram a insulina. Tudo feito em placas de laboratório, com bem menos impacto ambiental e num processo que a biotecnologia otimizou muito.”
Tecnologia
Tecnologia
Tecnologia